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Sai da Frente Bento

| sábado, 26 de dezembro de 2009 | 5 comentários |
Strange a woman who tries to save                                           
What a man will try to drown.
And it's the rain that they predicted,
It's the forecast every time.
The rose has died because you picked it
And i believe that brandy's mine.

Tom Waits – Strange Weather

O sangue escorreu involuntário pelo braço, a senhora apressou-se a limpá-lo com algodão e álcool: «Sente-se bem?» Eh! Não se sentia muito bem, havia toda a questão da falta de amor pela vida, da falta de vida com amor, e o Papa, meu Deus como o Papa podia ser deprimente. Os pupilos de Freud viam ali uma chamada de atenção, uma forma gritante de sublimar uma frustração qualquer, ele não. Ele gostava das tonturas e dos suores frios, do desfalecimento e da cosedura final. Gostava também, senão principalmente, da lâmina fria a cortar o nervo tenso. O arrepio e depois o ardor; o cheiro da carne queimada.
Andou meio estremunhado a princípio; sentia as pessoas passarem-lhe ao lado e comentarem a sua amarelidão, as olheiras cavas e o mau aspecto geral. A visão nessas alturas afunilava-se e os ouvidos pareciam encher-se de algodão, de modo que, toda a experiência se tornava gratificante. Tudo menos o aborrecimento, a ignomínia, a frivolidade. Nestes momentos não sonhava, era tudo simples e concreto e real; ainda estava por inventar droga alguma que batesse mais que um estalo da realidade.
Passados poucos dias voltava à normalidade; sentava-se amorfo em frente da televisão e exercitava somente os dedos do comando. Volta e meia aparecia o Papa, meu Deus como ele odiava o homem.

O Dilema do Homem-Aranha

| quarta-feira, 23 de dezembro de 2009 | 4 comentários |


Quando o pai natal foi encarcerado por condenação de pedofilia e abuso de confiança agravado, a penosa tarefa de distribuir prendas às criancinhas foi entregue ao homem-aranha. Tudo se passara muito naturalmente; os pais há muito que haviam abdicado da educação dos seus descendentes e a forma que encontraram para acalmar os putos foi convencê-los de que se se portassem bem, um senhor mais velho lhes traria presentes. Esta decisão acarretou efeitos catastróficos para toda a comunidade infantil, que para além de interesseira se tornou excessivamente crédula em relação a homens com 'prendinhas'.
Agora o homem-aranha estava desesperado. A tia May, cada vez mais doente, carecia da presença consoladora do seu sobrinho pródigo. O aranhuço entretanto não tinha mãos a medir, como Peter Parker já tinha a agenda atafulhada: jantar com a família da namorada, visitar a tia ao asilo e beber copos com o amigo Flash Thompson depois da meia-noite. A sua identidade de aracnídeo não ficava atrás no que tocava a compromissos, todos contavam com "o das teias" para patrulhar a noite abençoada. E agora mais isto: entregar presentes a miúdos ranhosos pelo mundo inteiro. O super-homem, esse maricas, rápido o suficiente para sobrevoar o mundo em escassos minutos, havia-se baldado à grande e ninguém sabia dele. Como nunca passou pela imaginação de ninguém que o herói-insecto pudesse possuir uma vida privada este encontrava-se agora perante o dilema de ter que escolher entre a família e o dever. Sentia-se mais só que nunca naquela noite de Natal, poucos eram os que podiam compreender a sua angústia.

O Juízo

| quarta-feira, 16 de dezembro de 2009 | 2 comentários |
Quando chegou a altura do veredicto, Ildefonso ponderou bem na decisão a tomar. Uma condenação é coisa séria, não se produz assim do pé para a mão. Queria castigar os culpados, queria muito castigar os culpados, mas queria fazê-lo de forma diferente, com classe e pedagogia. Ildefonso era um inovador, as suas condenações era como que um belo quadro em que as cores estão todas em harmonia e a mensagem, mesmo que não se perceba, está lá à vista de toda a gente. Nos corredores dos tribunais de Remulak – A Grande era considerado um artista por alguns, outros reconheciam-lhe o brilho de um génio.
Quando se aproximava a data do espectáculo que era um veredicto de Ildefonso, toda a cidade se animava num reboliço. Os feirantes montavam os seus negócios e toda a rua do tribunal se transformava como se de uma verdadeira feira se tratasse; havia carrosséis, palhaços, malabaristas, ursos, algodão doce, farturas, e, cerveja com fartura. Havia desacatos e porrada até dizer chega, mas isso já era um hábito da Cidade, com ou sem veredicto, o povo animava-se como podia.
Chegou o dia V e toda gente correu a encontrar o melhor lugar, o melhor cantinho de onde pudesse ver e beber das palavras do Ilustre Meretíssimo. Abriu-se a janela do primeiro andar do tribunal e Ildefonso surgiu em todo o seu esplendor na sacada. Os aplausos e assobios estrondearam numa ovação demorada. Ildefonso, coberto com o austero manto cor-de-rosa salpicado de estrelinhas amarelas (característico dos magistrados), levantou os braços em sinal de silêncio e o público aquiesceu.
- O culpado...É o motorista... - Um rugido soltou-se da multidão; já estavam à espera, concordavam uns, outros não, mas é claro que só podia ser, alvitrava a maioria.
- Fica aqui condenado...(silêncio sepulcral)...A um puxão de orelhas. Nova inquietação por parte do povo, era uma pena muito pesada, que não, que não, que ainda devia ser pior para dar o exemplo.
- Mas... - Aí vinha a parte inovadora que todos esperavam. - Se prometer nunca mais voltar a fazer o mesmo...pode ir em liberdade. Lá estava o toque sublime que os deuses só distinguem a alguns.
A turba entrou em extâse ao ouvir estas palavras e de imediato se entregou à palhaçada, à porrada com fartura e à cerveja com algodão doce. Estava decidido, o resto do dia seria de festa.
Labregoísio, que era parvo, tentava deslindar uma manchete para o seu pasquim vespertino. Observava a comédia em que se havia tornado a tragédia humana e escrevinhava imbecilidades.

Beat

| terça-feira, 15 de dezembro de 2009 | 8 comentários |
Quando Abrenuncio saiu da sala de espectáculos ia completamente jazzeado da cabeça. Acelerou o passo e desceu a rua ainda sob o efeito do martelar, aparentemente descoordenado, dos instrumentos de percussão. Inspirou e expirou como se preparasse para encetar um solo. A noite estendia-se pela frente como uma escala pronta a ser percorrida com os dedos e ele estava com o beat todo em cima, eléctrico e pronto para o concerto. Quando chegou ao Bar da Desgraça estavam lá todos; ninguém consegue escapar ao som das trombetas do demónio quando estas procedem à chamada. Pediu de beber e juntou-se à confusão, a jam estava ainda no início mas a estroinice já se tinha instalado. “Gosto disto” pensou consigo. Gostava de facto do inebriante vaivém das multidões, da vertigem e do desequilibrio. Com o canto do olho reservado às ramelas matinais descortinou-a no meio da multidão. Sóbria e elegantemente vestida como sempre, acompanhava-se da já habitual gente bonita. «Ah! Gente bonita...» Gritou Abrenuncio para dentro «Vocês são mais bonitos mas nós somos menos parvos» e nesse momento estalou um contrabaixo num walking febril como que a confirmar o seu juízo. Os trombones e os tambores juntaram-se à festa e criou-se ali um inferno jeitoso.

Uma Vela

| quinta-feira, 3 de dezembro de 2009 | 22 comentários |
Quando bateu a meia noite o senhor Honório ergueu o copo de whisky e com a voz entaramelada brindou: «À tua puto,... Mais um aninho hein? Se soubesses o que se faz por aqui em teu nome, deixavas de nascer todos os anos». Emborcou o copo e como se lhe faltasse qualquer coisa voltou a enchê-lo. O senhor Honório na sua idade avançada aprendeu a desgostar o Natal. Sentado na poltrona em frente da televisão assistia a todo aquele espectáculo triste de ignomínia e publicidade. Acendia uma vela, que colocava à janela para alumiar o caminho das almas, e bebia whisky até desmaiar. A alma que ele queria encaminhar até junto de si era a da sua mulher que tinha morrido no Natal. Ele, que era um anarquista dos antigos, nem sequer acreditava em almas, nem em milagres nem no menino Jesus, mas o peso da solidão tornara-se ao longo dos anos numa saudade impossível de carregar. Sentia saudades da sua companheira e das noites de Natal passadas com ela. As recordações mescladas com a dor que sentia nos ossos traziam ao de cima o seu mau feitio e logo se punha a gritar impropérios contra um deus invisível: «P'RA QUÊ QUE FOSTE FAZER O NATAL NO INVERNO?» Dizia coisas destas e os olhos enchiam-se-lhe lágrimas, «Ai, ai» choramingava. Sentia saudades de si próprio, da sua força e juventude. Bebeu mais um copo e voltou a dialogar consigo próprio: «Já não sou ninguém, sou farrapo...um farrapo OUVISTE?» Voltaram-lhe as memórias da mulher, de como ela o acordava sempre com mimos na manhã do dia 25, e foi embalado nessas recordações de tempos felizes que se entregou a Morfeu. Morfeu, apiedou-se da tristeza engelhada do velho e na manhã seguinte já não o devolveu ao século.

Para a Fábrica de Letras - Natal

O Aborrecimento

| segunda-feira, 30 de novembro de 2009 | 2 comentários |
Romualdo sabia que naquele dia se ia aborrecer. Acordou bem disposto, cantou no duche, desfez a barba com uma lamina nova e tomou um pequeno-almoço reforçado. Vestiu a sua melhor farpela, que ao mesmo tempo era a única que estava lavada e saiu de casa sabendo de antemão do aborrecimento que o aguardava. Havia algo que o puxava para aquela reunião, uma atracção mórbida que o seduzia sobremaneira. Ao mesmo tempo estava feliz por sair de casa; entre os livros e as conversas com Speedfreak, o cão, estava curioso de saber se ainda sabia falar humano, melhor, se ainda era reconhecido como um deles.
O seu isolamento deu-se numa altura em que a humanidade o deixou doente, fisicamente doente e mentalmente exaurido. Jurou que nunca mais iria abdicar dos seu feitio sui generis, estapafúrdio aos olhos do observador ocasional, por uma posição de conforto numa congregação de bandalhos mentecaptos, bêbados de sobranceria. Comprou ração para o cão e fechou-se em casa consigo mesmo, o seu melhor amigo. Naquele dia porém impunha-se um regresso anunciado e um sacrifício aos deuses da estultícia.
Chegou e sentou-se a um canto como que para não ser reconhecido, mas a forma como olhava para tudo e todos com desinteresse cedo o denunciou. A bajulação, a hipocrisia, a baixeza, a vilanagem; foi uma insana comédia a que se desenrolou à sua volta. Era o que ele esperava, tudo tal e qual como antes. Tinham passado dez minutos quando a profecia se cumpriu: estava aborrecido.

Crime Sem Importância

| terça-feira, 24 de novembro de 2009 | 2 comentários |
Quando a D.Ermelinda entrou em casa deparou-se com um espectáculo que ia do caótico ao grotesco. A sala estava toda desarranjada e no meio do chão, espalhado por todos os lados, estava Abrenúncio em cacos. A sua primeira reacção foi ir à cozinha e colocar as luvas de borracha com que costumava lavar a loiça, era muito importante não contaminar a cena do crime se é que tinha havido um. Pôs os óculos escuros e desatou a avaliar a situação. Segurou com cuidado uma orelha de Abrenúncio, que jazia junto ao móvel da televisão, aproximou-a da boca e mandou dois dos seus gritos mais estridentes: nada. Olhou em volta com um ar perscrutador e decretou: «Hummf! Isto não vai lá nem com super-cola 3.» Estava portanto para além de qualquer remedeio físico. Passeou-se lentamente por entre os destroços em busca de sinais de delito mas não os encontrou. Aliás, as garrafas vazias de vodka contavam bem a história: «O homem estava emocionalmente danificado»- diagnosticou a D.Ermelinda cujo marido era mecânico e uma vez consertara o carro de um psicólogo. Pela parte que lhe tocava o assunto estava arrumado, só havia ainda uma medida a tomar: foi buscar a vassoura e varreu os restos de Abrenúncio para debaixo do tapete.
À saída, mirou-se ao espelho que estava à entrada, tirou lentamente os óculos escuros, voltou a colocá-los na cara e com as mãos nas ancas proferiu com uma voz grave: «Foi...Uma limpeza!»

Aquilo

| sexta-feira, 20 de novembro de 2009 | 4 comentários |
A descida de Zeferino ao inferno começou no dia em que chegou ao paraíso. Pensando que ia encontrar o fim do caminho, a última paragem, a estação de repouso, Zeferino deparou-se com aquilo que todos encontram quando chegam ao topo: o caminho inverso. Por isso começou a descer. Pelo caminho, que iniciou depois de acender um charuto, pôs-se a relativizar:«Ah! Quão mau pode ser o inferno?» Era tudo uma questão de ponto de vista, afinal, muitos dos defeitos apontados ao diabo eram as suas melhores qualidades. As pessoas em quem se tinha apoiado na sua subida vertiginosa abriam agora alas para que descesse mais rápido, sem atritos. Não os reconheceu. Cruzou-se com a mulher e os filhos que não lhe retribuíram a saudação ao percorrem o caminho contrário:«Não me devem ter visto» desculpou Zeferino a família. De certa forma tinha razão, não o tinham reconhecido sem as suas roupas, os seus acessórios, a sua tecnologia de ponta e o seu característico charuto. «O meu charuto?» apercebeu-se Zeferino que já não o tinha quando chegou ao inferno. Cedo deu-se conta que não era só o charuto que lhe faltava, era tudo. Não tinha forma sequer, era só pensamento. Um pensamento que pairava mas não progredia, era vazio, estéril. Já não era Zeferino sequer; era aquilo. Tudo era branco e o diabo não havia.
«O inferno sou eu!» Foi o último raciocínio lógico que observou.

A Revolução

| terça-feira, 17 de novembro de 2009 | 9 comentários |


Compareceram todos na praça velha, junto ao edifício antigo do Governo Civil, que parecia aborrecido com mais aquele ajuntamento rebelde a conspurcar-lhe as paredes intemporais. O que fazer? Era o único posto representativo da autoridade que conheciam, e, se queriam começar uma revolução, que melhor sítio para mandar pelos ares do que aquele? A agitação era constante, haviam movimentações desordenadas, homens com o cenho franzido treinavam poses de indignação, outros corriam de um lado para o outro a reagrupar uns poucos que se tinham tresmalhado para fumar cigarros. Tinha que haver união porra, senão a coisa não avançava. Depois de muitas considerações “engenheiras” sobre qual seria o melhor local para pôr o barril de pólvora, foram unânimes em colocá-lo à porta do edifício. Inseriram o rastilho e pronto, logo se excitaram no ar as bandeiras da revolta.
- Pela Lei e pela Grei – Gritou Abrenúncio-O Simples, e levantou alto a tocha que poria em marcha a sublevação.
- Pela quem? - Inquiriu Romualdo que estava nas filas de trás e ouvia mal.
- Pela Grei – repetiu Ildefonso.
- O que é isso?
- É o povo, somos nós – Explicou Ildefonso a uma pequena multidão que rapidamente se ajuntara para escutar a “descomposição” da malfadada palavra que nunca ninguém tinha ouvido.
- Nós somos a Pelagrei? - Resmungou Anacleto desconfiado.
- Diz que sim – Confirmou Labregoísio encolhendo os ombros. E de repente, como se tivessem sido ensaiados  largaram todos a uma só voz:
PELAGREIPELAGREIPELAGREI-...
Abrenúncio, sentindo finalmente o apoio da chusma, incendiou o rastilho e  todos se acocoraram abrigados à espera do estardalhaço que por aí viria.
O estardalhaço chegou sem dúvida mas não passou disso. A porta permaneceu intacta, aborrecida como sempre, sem ceder um mílimetro que fosse aos rebeldes. A "comissão de engenheiros” reuniu-se de novo e chegou à conclusão que a pólvora usada fora a seca, a que costumavam usar nos dias de festa. E agora? Já não havia maneira de arranjar pólvora boa àquelas horas. Abrenúncio–O Simples, como líder nato que era declarou:
- Meus amigos! A Revolução fica para a próxima quarta-feira à mesma hora - E dito isto a multidão debandou lentamente e a praça ficou vazia com o edifício do Governo Civil a rir-se baixinho. Chegaram todos a casa à hora do jantar. O dia seguinte era dia de trabalho e o trabalhinho é muito bonito.

Nunca Mais

| domingo, 15 de novembro de 2009 | 14 comentários |
Há muito que todos se tinham ido embora. O homem ficara sozinho naquele mundo a preto e branco, um mundo antigo cheio de coisas do outro tempo e de modos e costumes que já não se usavam. Porque ficara só nesta existência de dois tons? Era a pergunta que repetia a si próprio. Também não sabia responder. Havia algo naquela existência que o acalmava, os planos policromáticos assustavam-no; ele que não gostava muito tomar decisões entre isto e aquilo, e a quem o cinzento já fazia confusão, apavorava só de imaginar as múltiplas radiações do arco-irís. Os outros falavam-lhe das maravilhas do espectro da luz, de como todas as cores eram belas e das múltiplas possibilidades que advinham da sua combinação, mas ele, que era igualmente daltónico a tudo o que não fosse a sua convicção fechava-se em teimosia e recusava-se a partir para a outra margem. A pouco e pouco a Cidade foi ficando deserta e quando os últimos resistentes deram o salto para o lado de lá, o homem ficou irremediavelmente sozinho naquela vida que tinha escolhido para si. Não tinha vocação para solitário e quando vagueava pelas ruas, discursando sozinho e discutindo com as figuras imaginárias que outrora foram os seus amigos sentia-lhes a ausência. Gritava impropérios numa rua vazia e o eco devolvia-lhe a sua angústia monocórdica.
Um dia caminhou rente à fronteira que separava os dois mundos como que a testar a sua perseverança e o destino (que não gosta que o ponham à prova) colocou-lhe uma pedra no caminho onde ele tropeçou. A gravidade, que também não estava para meias medidas, puxou-o com violência. Caiu estatelado de braços abertos desenhando no chão uma figura circense algo patética. Sentiu que sangrava e levou a mão à boca, os dedos recolheram uma amostra, era vermelha.
O mundo à sua volta depressa o inebriou. Sentiu-se tonto e ao mesmo tempo desperto. Sim era verdade, as possibilidades eram infinitas e havia esperança. Nunca mais serei fiel ao meu estranho fado jurou a si próprio e quando se levantou já era uma pessoa a cores.

Para a Fábrica de Letras - Preto e Branco

O Descalabro

| quinta-feira, 5 de novembro de 2009 | 2 comentários |
Era fraca a conversa e compararam-no a Gulliver – O gigante. Ele respondeu que não, não era um gigante, os liliputianos é que eram pequeninos por serem tão mesquinhos. Ele tinha um tamanho normal, passava despercebido na multidão, era anónimo e já não estava no seu primor. O seu tempo havia acabado e não, não se dão segundas chances a ninguém, só nos filmes. Agora discursava de gosto, era o que acontecia sempre bebia umas a mais. Nos filmes, continuava ele, «o rapaz é sempre muito bonito e bem educado, e está sempre com um problema, o problema do rapaz é ser bonito e ninguém gostar dele. Geralmente no fim há um twist, um volte-face e toda a gente assume que sim, porra, o rapaz é mesmo giro e, do nada, surge uma rapariga tão bonita quanto ele e depois casam-se e vão-se embora em câmara lenta. Na vida real, na estúpida da realidade...», gritava agora, «...o rapaz em abono da verdade é uma aberração que até dá dó olhar para ele, um estafermo de raça lobo, ninguém o vem buscar, os problemas não se resolvem: acumulam-se! Não há rapariga em câmara lenta, não há twist e no fim morre-se de cancro». Bebeu mais um longo trago, desta vez directamente da garrafa e encostado ao bar continuava a vociferar:«Já não há pensamento crítico, já ninguém pensa por si próprio, onde é que está o filosofar espontâneo? Temos alguém que nos diz o que fazer, para onde ir, e melhor: o que comprar. Ao domingo depositamos um bilhetinho na ranhura de uma caixa e pronto, vamos para casa satisfeitos, já não precisamos de pensar em mais nada: a nossa missão está cumprida. Feliz natal.»
A reacção dos convidados à sua volta dividia-se em duas: aqueles que concordavam com ele mas abanavam a cabeça com pena de o ver naquele estado deplorável e os que viam nele só mais um bêbado a uivar à lua. O certo é que naquela noite, e para infortúnio dos anfitriões, ele decidira despejar a sua alma ao mesmo tempo que se encharcava em vodka.
«Enfileirem-se carneiragem! Sigam o vosso pastor! O caminho é estreito e curto e o destino é o matadouro.» Estas palavras já as proferiu sentado no chão. Meteu a cabeça entre os joelhos e começou a chorar. Uma senhora mais ou menos da sua idade acercou-se dele e ajudou-o a levantar-se. Conduziu-o até à porta de saída. Não era bonita.

O Primeiro Amor

| quarta-feira, 4 de novembro de 2009 | 2 comentários |
Apaixonou-se por ela mal lhe pôs os olhos em cima. Era de manhã e tinha ido comprar o jornal para o seu pai ao quiosque do senhor João como era hábito. E de repente lá estava ela, com aqueles olhos grandes como se chamassem por ele. Era a primeira vez que uma moça tão bonita aparecia num sítio de esquecimento e abandono como era aquele. Encostou-se à banca do senhor João e sentiu que ela o observava fixamente. Corou. Recebeu o troco das mãos do vendedor e largou a correr para casa como se fosse perseguido por algo que não conseguia explicar. Era aquilo o amor? Devia de ser. Cada vez que pensava nela o coração acelerava arrítmico, sentia um frio percorrer-lhe a espinha, suava e tremia das mãos:«É o amor é, o meu pai já me tinha dito que era igual à gripe.»
No dia seguinte para seu espanto e alegria e um bocadinho de terror, encontrou-a no mesmo sítio, à mesma hora. De pernas bambas, e com um nó do tamanho dum camião TIR a atravessar-lhe a garganta, engasgou-se ao pedir o jornal.«Então pá, 'tas bem ou quê?» O senhor João que topara a cena toda logo ao primeiro dia divertia-se a fazer pouco do embaraço do moço. Em casa, no seu quarto, já mais calmo fez uma promessa a si próprio: «Amanhã, se ela lá estiver, tomo uma decisão. De amanhã não passa.» Logo pela manhãzinha, como sempre, dirigiu-se à praça e encostada à banca do senhor João, lá estava ela, parecia que o provocava cada vez mais. Comprou o inevitável jornal e depois, com assombros de timidez apontou o dedo para ela a tremelicar e balbuciou:«Era também...» O senhor João, que já estava careca de saber o que ele queria, não o deixou acabar a frase e entregou-lhe a Playboy Portugal, que estava no expositor com a rapariga dos seus sonhos na capa: «Estava a ver que não ó rapaz, ah!ah!ah!» Ele, contente consigo próprio, saiu esbaforido e foi aninhar-se à sombra da sua árvore preferida. Ao fim da tarde já ele conhecia a sua paixão, o seu primeiro amor, como a palma da mão.

O Faroleiro

| terça-feira, 3 de novembro de 2009 | 2 comentários |
Olhava o mar e esperava: algo ou alguém, não sabia. Ela, sempre optimista discorria sobre as inúmeras hipóteses de saída para uma situação que não era de todo desesperante - incentivava-o. Era uma constante das suas alucinações, reflectia ele, eram sempre femininas e optimistas. Há muito que desistira de lhes dar ouvidos. Sentia-se bem, em forma, o isolamento ainda não lhe afectara as articulações, a gravidade era a mesma em toda a parte. Mas a vontade era a de se deixar estar, naquela ilha junto ao farol, a ver o mar e esperar. «Vá lá pá!!!» exortava-o ela nas suas conversas imaginárias «parte uns pauzinhos, faz uma fogueira...». Ele respondia com o silêncio de quem já se habituou a não falar, para quem uma conversa não passava de ruído de fundo, um ruído que vai e vem com a marulhada. À distancia, para quem o olhasse através dum monóculo, numa tentativa vã de o descobrir, parecia um ser decente, afável talvez, mas quem o observasse mais de perto e com atenção logo daria com o sinal que alertava: produto defeituoso.
Subiu ao farol e maravilhou-se com a violência das vagas. A fúria da natureza era o seu espectáculo favorito; os trovões, as tempestades, os cataclismos.
Gostava de pensar que tinha nascido para faroleiro, a profissão tinha as suas medidas exactas: a solidão e o afastamento. A luz guiava-os a todos e ele controlava a luz.

O Duplo

| quinta-feira, 29 de outubro de 2009 | 3 comentários |


O professor Otto Klism há muito que andava obcecado com a canção Der Doppelgänger de Franz Schubert. Sonhava com a música, recitava constantemente o poema e nas suas aulas de violoncelo, ainda que originalmente escrita para piano, era um das peças obrigatórias. Já para não dizer que quem não tocasse O Duplo na perfeição, arriscava-se a não seguir em frente, por muito bom executante que fosse. Os colegas estranhavam-lhe a cisma, mas tratando-se da sumidade que era todos lhe perdoavam a excentricidade.
Numa bela noite de luar, ao regressar a casa mais cedo que o costume devido à não comparência de um aluno, O professor Otto Klism encontrou a esposa na cama a satisfazer ruidosamente, e até um pouco desafinada, os seus ímpetos carnais. Qualquer outra pessoa reagiria à situação com surpresa, com fúria até, mas não o professor. «É o meu Duplo que ali está» pensou com uma alegria desmedida «Cheguei a casa ainda antes de mim». Aclarou a garganta, fechou os olhos e na sua melhor imitação de tenor rebentou em Si menor:
Ó tu doppelgänger! Tu pálido camarada! Porque arremedas a dor do meu amor/Que me atormentou aqui neste lugar...
O mancebo que até então não se apercebera do elefante lírico dentro do quarto, lívido de susto, largou um salto para fora da cama e acto contínuo escapuliu-se pela janela. Quando a pequena récita acabou, o professor Otto, de braços abertos como que abraçando uma multidão invisível, abriu os olhos satisfeito e perguntou à mulher «Então? Que tal me saí?» Fraulein Klism agarrada ao lençol em estado de choque, conseguiu soltar as mãos que lhe tremiam, e num aplauso muito arrastado gaguejou: «Bravo! Bravo!»

Vade Retro

| quinta-feira, 22 de outubro de 2009 | 8 comentários |
«Ai meu Deus, ai meu Deus, acudam depressa...» Era a dona Eufrázia que toda afobada corria pelas ruas estreitas da aldeia e bradava aos ventos «É o Anticristo! O Anticristo chegou à aldeia.» Cansada, pois a idade já não lhe permitia aquelas correrias, parou junto da casa da dona Ermelinda: «O que é que dizes p'raí mulher, o anticristo? Que disparate é esse?» Era verdade, que ela jurava por todos os santinhos, por Jesus Cristo, pela sua mãezinha e pelo Pai Nosso. O filho do demo chegara à aldeia e preparava-se para resgatar todas as almas para o seu pai, o grande demo, Belzebu, o chifrudo, e dito isto cuspiu no chão e fez o sinal da cruz três vezes sobre a testa. Não durou muito tempo para que um aglomerado de beatas aldeãs se juntassem à volta de Eufrázia e anuíssem na sua cisma com o Anticristo. «Já se esperava que ele atacasse por esta altura» dizia uma com um ar de quem percebia destes assuntos «aproveitou que os vermelhos estão no poder e depois com esta crise, já se sabe...» Que sim, que era mesmo isso, estavam perdidas se não fizessem alguma coisa. E depois logo o Anticristo, não era brincadeira, o senhor prior tinha que ser avisado. Foram em bando a correr até à casa da dona Alambácia que era onde o padre estava a “almoçar”. O homem ao escutar a vozearia que se fazia ouvir à porta da sua “anfitriã”, saiu espavorido, com o cabelo em desalinho e com a batina ainda desapertada: «O que é que se passa?» E lá explicaram a história toda ao padre, de como o Anticristo (de dois metros) chegara com os seus exércitos e desatara a comer criancinhas no meio da praça. «PARA A PRAÇA E EM FORÇA!!!» gritou o eclesiástico, e lá foram todas de saias arregaçadas pelo joelho, o padre inclusive, a correr para a praça troando assustadoramente «A aldeia, é NOSSA! A aldeia é NOSSA
No centro da praça um homem arrumava livros sobre uma banca improvisada - «Lá está ele» identificou a dona Eufrázia que liderava a matilha, e, saltando por cima das formais apresentações, saltaram para cima do homem com vassouras, ancinhos, crucifixos e até com as próprias mãos. Malharam no homem que foi um espectáculo nunca visto. Com as suas vozinhas esganiçadas gritavam: «Morre cão tinhoso» ou «vade retro» até que se deu o inevitável: o tinhoso morreu. Quando o boticário chegou para confirmar o óbito, fez mais do que isso, confirmou também a identidade do sinistrado. «É o jovem Abílio, da biblioteca itinerante.» Silêncio geral...O padre chegou-se à frente, como bom representante da sua fé e fiel protector das suas paroquianas, limpou as mãos à batina, tossicou e proferiu:«É bom de ver, o homem não devia andar para aí assim, a brandir livros às pessoas.»

À Chuva

| terça-feira, 20 de outubro de 2009 | 2 comentários |


O homem gostava de andar à chuva e pronto. Era uma mania como outra qualquer. Quando chovia apressava-se a sair de casa e fazer longos passeios. Gostava de tudo nos dias chuvosos, do cinzento do céu, do estrondear dos trovões e dos flashes dos relâmpagos. Era como se Deus estivesse a tirar-lhe uma fotografia, por isso sorria sempre para o céu dispondo-se numa pose mais ou menos teatral. Enquanto as pessoas corriam a abrigar-se nas arcadas dos prédios, ele deslizava pelo passeio e aterrava propositadamente nas poças de água, outro dos seus prazeres infantis, o de chapinhar na água das poças lamacentas. Quando chovia sentia-se o rei da cidade. Agradava-lhe que o seu reino fosse obscuro e que desagradasse ao resto da populaça, a felicidade das pessoas irritava-o. Chamavam-lhe maluquinho mas ele não se importava, aproveitava a dica para cantar: ...Mas louco é quem me diz, e não é feliz...

O Homem Novo

| domingo, 18 de outubro de 2009 | 2 comentários |
O senhor Laurentino era uma pessoa mudada. Para aqueles que são apologistas da ideia que um indivíduo não consegue mudar, nas suas filosofias e atitudes, o senhor Laurentino era um exemplo. Até no aspecto ele mudara, mas tal devia-se principalmente à idade. Os tempos de serial killer tinham ficado para trás e agora tornara-se num exemplar membro da sociedade que tanto aterrorizara. Os gestos pachorrentos, a paciência e bonomia que dedicava a todos os assuntos, a enorme afabilidade e candura com que ouvia os outros faziam dele um cidadão modelo; que o dissessem o seus vizinhos. Ao domingo ajudava na igreja a recolher os donativos e ficava sempre até mais tarde de conversa com o prior. Este não poucas vezes era convidado para almoçar com o senhor Laurentino no recato do seu lar. Nas palavras do padre ele era um pilar, um temente a Deus como nenhum outro.
Nos momentos que passava sozinho, o senhor Laurentino gostava de reflectir sobre o seu caminho, balancear a sua vida, pesar os prós e os contras. Não estava arrependido de nada, isso não, para isso era preciso ser portador de uma moral que a ele claramente faltava. Continuava a desprezar a sociedade e todos os seus mesquinhos participantes? Sim, embora agora encontrasse um novo prazer na sua relação com tais criaturas. Agora era-lhe indiferente. Até sentia às vezes um prazer dúbio na sua interacção com as chamadas pessoas normais. Gostava deste novo olhar, de alegria, com que o fitavam, muito oposto ao de histeria e desespero que punham sempre que o viam de cutelo na mão. Agora vibrava de excitação sempre que interagia com alguém, por saber que a poderia aniquilar a qualquer momento sem o fazer no entanto. Gostava da sensação de saber que as suas palavras tinham significado para alguém e que eram até esperadas como gotas de sabedoria. O respeito batia-lhe como uma nova droga, e ele sentia-se agarrado. Era um homem novo e redimido. O próximo passo: enveredar pela vida política.

Não Me Parece

| quinta-feira, 15 de outubro de 2009 | 6 comentários |
Quando Ildefonso saiu de casa pela manhã estacou à entrada. Estava um destes dias solarengos que de outono não têm nada. Sentia-se rabugento e implicativo, normalmente quando se sentia assim o dia corria-lhe da pior forma possível, era como se estivesse em disputa constante com as leis do universo, enfim...dias cabrões. Mesmo à sua frente o vizinho do andar de baixo passeava o cão que se entretia a cagar todo o passeio. Cumprimentou mal-disposto o cão e apeteceu-lhe correr com o vizinho a pontapés até ao fim da rua. No outro lado da estrada, na cabine telefónica, dois arrumadores acertavam os pormenores do pequeno almoço antes de se iniciarem em mais um dia de trabalho árduo. Ildefonso ainda antes de dar o primeiro passo, aquele que poria em marcha todo um dia que se afigurava amargoso pensou:«Humm! Não me parece.» Fechou a porta e voltou para casa. Deitou-se na cama como se tivesse gripe e ligou a rádio, «Humm! Jazz de manhã.» Acertou o despertador para dez anos mais tarde.

Terça-Feira 13

| terça-feira, 13 de outubro de 2009 | 0 comentários |
- O que me diz disto doutor?
- É simples. Alucinação!
- Alucinação doutor? Mas estão ali milhares de pessoas...
- Alucinação colectiva meu caro, há muito que os anarcas andavam a prometer deitar LSD25 no depósito de água.
- Mas não será isso um pouco cruel doutor? Para além de perigoso. Podemos inclusive entendê-lo como um acto terrorista.
- Antes pelo contrário, antes pelo contrário; Podemos considerá-lo como um acto de libertação no que toca ao factor humano, como estudo sociológico é uma experiência assaz interessante e como manifesto político é quase perfeito.
- As pessoas no entanto não parecem estar de acordo consigo doutor, ajoelham-se e rezam, é o que as vemos ali fazer.
- É assim meu amigo, oferece-se uma experiência de libertação às pessoas e o que elas fazem? Renegam-na, cobrem-na de mantos escarlates, entoam cânticos tenebrosos e choram de tristeza pela sua eterna escravidão.
- Preferem o conforto da escuridão ao inebriante baloiçar da luz.
- Exacto, em termos aristotélicos poderíamos afirmar que têm aquilo que merecem.
- E o caso das crianças doutor? As crianças não embarcam assim sem mais nem menos em vãs filosofias.
- Ah! Isso é diferente. As crianças comeram daqueles cogumelos que ali vê, sabemos que produzem os mesmos efeitos.

O Candidato

| segunda-feira, 12 de outubro de 2009 | 0 comentários |
A Chefe de Secção chegou ao departamento de tal forma inchada que quase não passava da porta. Quem a visse diria que ia explodir, tal não era a forma como avolumava. Tinha ganho o seu candidato, finalmente. Depois de muito ouvir aos seus subordinados afrontas e gracejos insinuados, depois de tantos anos de abstinência eleitoral, chegara o dia tão desejado. Porra! Até que enfim. A justiça havia sido reposta em Remulak - A Grande.
O homem, na sua boca, não era um homem; era o Rei que finalmente regressava para cuidar do seu povo tão mal amanhado. Pensam que se trata de um simples mortal, de um borra-botas, de um valdevinos qualquer? Não! Exclamava ela com toda a pujança de um tenor: «O homem é um doutor! Um doutor ouviram?» Os subordinados ouviam; ouviam e engoliam em seco. Um sapo daquele tamanho era praticamente impossível de engolir, ainda por cima inchado como estava, nem com vaselina. Zeferino, o distraído, gostava de encarar o cenário pelo seu lado positivo: «Não há-de ser nada» contemporizava, «só custam os primeiros quatro anos.»

O Paraquedista

| quarta-feira, 7 de outubro de 2009 | 4 comentários |
Quando Romualdo era pequeno andava sempre a cair. Não aquelas quedas naturais e até um pouco saudáveis que todos os miúdos da altura davam e que hoje são tão raras porque a criança pode-se magoar. Não, as quedas dele era aparatosos espectáculos aéreos dignos de um duplo de hollywood, e, sem redes nem amortecedores de impacto. A sua estreia foi logo aos cinco anos quando, descurando os avisos do pai, caiu do primeiro andar duma qualquer agência de viagens. A cabeça aumentou-lhe para o dobro e nessa noite não pôde dormir por ordem do médico. No ano seguinte entrou para a escola primária sem recordações nenhumas anteriores a essa data.
Talvez porque a memória a curto e a longo prazo lhe tivesse ficado afectada, experimentou o seu segundo voo logo aos oito anos. O céu estava limpo, o vento era fraco e as condições eram todas propícias a uma queda do primeiro andar de um prédio em construção. Este até teria sido um evento pouco digno de menção não tivessem sido os tijolos que lhe caíram em cima acto contínuo à queda. Um buraco na perna por onde conseguia ver o osso foi o rescaldo final do incidente; o pai levou-o ao hospital para ser cosido e desta vez, sorte das sortes, pôde dormir à noite.
Até perfazer a bonita idade de vinte e dois anos, Romualdo não voltou a cair. A maldição acabara, chegou a pensar. Caiu muito de bicicleta, partiu a cabeça duas vezes, mas sempre derivado a brincadeiras saudáveis, nada de especial. Como se disse, aos vinte e dois anos, já adulto inconsciente portanto, numa noite de copos e confusão numa discoteca maligna, enquanto tentava meter conversa com uma miúda gira, o inevitável desequilíbrio do ser fez com que Romualdo se descadeirasse do primeiro andar abaixo, conseguindo o prodígio de não acertar em ninguém. O copo de cerveja partiu-se e os cacos cravaram-se-lhe na mão. Desta vez chorou muito, não de dor que não lhe doía nada, mas por não suportar ver cerveja desperdiçada.
Até aos dias de hoje nunca mais caiu e já lá vão largos anos. Não tem saudades. Às vezes dá consigo a questionar-se: teria ele alguma desavença com a lei da gravidade? Ou seria Deus, que para o castigar do ateísmo de vez em quando o empurrava?

A Recordação da Escócia

| terça-feira, 6 de outubro de 2009 | 4 comentários |
Enquanto ela lhe contava a sua aventura por terras da Escócia, Abrenúncio pensava em garrotes. Qual seria o melhor garrote? O de seda? Humm, não sabia que tipo de imagem deixaria um garrote de seda; embora deixasse um cadáver mais bonito as ilações a recolher seriam quando muito dúbias. O garrote de aço estava fora de questão, tresandava a assassino contratado e ele queria que tudo fosse tratado com grande classe. Ela explicava-lhe como os diferentes tipos de malte formavam um blend, falava-lhe dos diversos sabores e aromas e da técnica de envelhecimento, ele anuía com a cabeça afirmativamente; «bom, não terá que ser necessariamente com um garrote» pensava. Como caminhavam lado a lado as mãos de ambos tocavam-se involuntariamente. Ela não se descaía, e como se nada fosse, continuava a dissertar sobre a Escócia e seus castelos assombrados.
As armas de fogo estavam fora de questão, faziam muito barulho e os seus nervos há muito que pediam era silêncio. As facas e derivados eram sempre uma trapalhada, tinham que ser muito bem manejadas e deixavam tudo sujo. Chegaram ao fim do parque e durante o ritual da despedida, enquanto mediam bem as distancias para que os beijos na cara fossem cientificamente de amizade e não suscitassem equívocos de qualquer espécie, ela passou-lhe um saco para as mãos: «Uma recordação da Escócia.»
Abrenúncio abriu o saco e tirou de lá uma generosa garrafa de single malt. O vidro era do mais espesso que já havia visto e o gargalo manuseava-se bem. Uma pancada seca e acabava-se tudo, sem sangue, sem barulho, sem complicações. Esboçou um sorriso de agradecimento: «Obrigado, vai servir-me na perfeição.» Ela ficou contente que ele tivesse gostado. Gostava de o ver assim: calmo, simpático e educado, parecia outra pessoa.

O Ar dos Balões

| sexta-feira, 2 de outubro de 2009 | 0 comentários |
Chegou a uma conclusão que resultava do cansaço que sentia. As dores que lhe atravessam o corpo, os ais dos tendões, as reclamações dos músculos, o reumático precoce da adolescência, tudo se conjugava de forma a mantê-lo sossegado, estático, inerte. Quando neste estados, o seu espírito, como o ar quente que faz subir os balões, inflamava-se e ascendia a outras planícies. Terras de felicidade e contemplação. Era todo um outro universo que se queria imutável – nothing's gonna change my world – trauteava contente. Razão tinha o outro que sentia prazer em não cumprir um dever, reflectia. E nestas filosofias que se querem pequeninas porque também elas às vezes cansam, viu com clareza: a dor é boa.

O Comunicado

| terça-feira, 29 de setembro de 2009 | 0 comentários |
Quando o Palhaço-mor convocou a assembleia geral todos os restantes funcionários do circo ficaram num enorme estado de excitação. Eram sempre uma incógnita os comunicados daquele que era considerado o Rei dos Palhaços. Pérolas de sabedoria, sábias advertências, ou, se estivesse aborrecido, sérias admoestações, era o que se podia esperar de mais uma aparição fulgurante do Palhaço-mor. Ao fim da tarde, depois da hora de jantar dos ursos, era quando o Palhaço-mor gostava de arengar à congregação circense, e, à hora do costume, lá se encontraram todos; os funâmbulos, as contorcionistas, o domador de leões, os trapezistas, os restantes palhaços e até alguns cães adestrados. Não faltaram também os carregadores e montadores de tendas que, regra geral não entendiam nada do que era proferido pelo douto saltimbanco, mas  gostavam de aparecer e de ser vistos naqueles ajuntamentos sociais. Exactamente na hora marcada, nem mais nem menos um segundo(podia-se acertar o relógio por ele) o Grande Palhaço subiu ao palanque e num primeiro momento exibiu a sua cara séria, com as pinturas de palhaço zangado, dava a entender que o assunto era sério. Esticou o lábio inferior deixando a boca aberta por segundos antes algum som dela saísse. E o que finalmente saiu foi: «Hoje de manhã acordaram-me às 8h00», um clamor surgiu de imediato por entre a audiência; como é que era possível? E o Palhaço continuou «Eu só costumo acordar às 9h00.» Era verdade toda a gente o sabia, a indignação espalhava-se pelos presentes ainda suspensos das palavras do Palhaço que finalizou com uma (lá está) admoestação: «Que isto nunca mais se repita, pois sou capaz de ficar aborrecido», e, dito isto afastou-se na sua melhor pose de Palhaço-mor, o primeiro entre iguais.
Os presentes logo formaram grupinhos onde comentaram e analisaram a gravidade do comunicado. «É realmente um escândalo» ouvia-se neste grupo, «Ainda por cima à pessoa que foi» diziam aqueles mais além. Um dos palhaços comuns, que eram muito dados às teorias da conspiração, logo alvitrou uma hipótese: «Só podem ter sido os titereiros, eles é que têm a mania de mexer em todos os cordelinhos.»

Livre Arbítrio

| quinta-feira, 24 de setembro de 2009 | 3 comentários |

As Ratazanas

| terça-feira, 22 de setembro de 2009 | 9 comentários |
O Verão acabou e as eleições estão à porta. Duas formas comuns de acizentar os dias. Ao abrigo das nuvens escuras que ensombram o horizonte chegam as ratazanas. Cheias de bons modos, boas maneiras e promessas vãs, saem no princípio do Outono; que é quando é mais fácil tapar o sol com a peneira. O seu discurso é fastidioso, o seu sorriso é boçal, as suas intenções são venenosas, a sua mordidela é torpe. Amolecem-nos ao de leve o tempo suficiente de nos envolverem na sua ilusão. Depois seguem em caravana atropelando cães e gatos pelo caminho. São espertas estas ratazanas. Sabem que são espertas. Sabem o quanto somos mansos.
Pensava nisto Abrenúncio na esplanada dum bar em Paramaribo. Nunca o entardecer lhe parecera tão bonito, nunca o rum lhe soubera tão bem.

A Descoberta

| quinta-feira, 17 de setembro de 2009 | 4 comentários |
- Uma descoberta magnífica esta, doutor.
- Sim, modéstia à parte, podemos dizer que foi um grande passo para a civilização moderna.
- Ninguém diria que eles se afundariam tão rapidamente.
- O truque foi trasladar todo processo da água salgada para a água doce.
- E o porquê dessa mudança, doutor ?
- Bom, caro amigo, depois de muitos anos a estudar o homem-político, concluímos que este não tem consciência.
- E de que forma influencia isso a velocidade com que eles se afundam?
- É fácil de ver. A príncipio todos julgámos que, como não tinha consciência, o homem-político afundar-se-ia rapidamente, no entanto a experimentação provou-nos o contrário...
- Como assim doutor?
- É simples. No sítio onde deveria estar alojada a consciência, no homem-político não existe absolutamente nada, só o vazio. Vazio este que ao encher-se de ar inicia todo um processo de insuflação que resulta no boiar do político. Daí que, quando atirado ao mar, já de si propício à flutuação devido ao seu grau de salinidade, o homem-político era praticamente impossível de afogar.
- Mas, e permita-me a dúvida doutor...
- Concerteza.
- Por tudo o que acabou de explicar, não deveria o homem-político, flutuar também na água doce ainda que com maior dificuldade?
- Exacto. Foi por isso que lhe prendemos uma bigorna aos pés.
- Ah! Brilhante, magnífico, doutor. Não quero agourar, mas pressinto aqui um Prémio Nobel.
- Oh,...É muito gentil da sua parte.

A Moleza

| terça-feira, 15 de setembro de 2009 | 4 comentários |


Ildefonso arrastava-se pelo sofá imitando um qualquer animal invertebrado. Com os braços pendidos, erguia-se por cima das almofadas contorcendo-se lentamente até achar a posição adequada. De lábio inferior descaído e  olhos tardios, deixava-se estar até chegar a altura de rastejar para outro canto da sala. O telefone tocava a intervalos curtos, mas para Ildefonso o aparelho encontrava-se a anos-luz de distância. Mesmo que lá chegasse, os braços recusar-se-iam a funcionar, por isso «é escusado telefonarem» pensava Ildefonso à laia de mensagem de gravador de chamadas. Dormitava naquela modorra povoada de sonhos estranhos; onde podia correr, saltar e até voar a uma velocidade vertiginosa. Depois acordava com um fio de baba a escorrer-lhe do canto da boca, empapando-lhe a bochecha.
«Ahh!» Balbuciava. Gregor Samsa podia não saber em que ser repelente se havia transformado, mas Ildefonso sabia-o bem: «sou uma lesma!».

O Espelho

| quarta-feira, 9 de setembro de 2009 | 4 comentários |


Um dia, ao passar em frente a uma montra espelhada de uma qualquer casa de comércio, o homem teve um choque que o deixou combalido. A sua imagem, meu Deus, como havia mudado tanto sem dar por isso. Os olhos mais encovados do que o habitual, rodeados de pequenas rugas que lhe recortavam o cenho e a pele a evidenciar claramente que Newton tinha razão. Tinha envelhecido mais de dez anos sem nunca dar por isso. Mas como? Se quando se mirava em casa, o espelho lhe retribuía sempre a imagem jovial e fresca do antigamente, aquela que toda a gente sempre identificara com o seu charme. Arghh!!! Fora o seu espelho, bandido, querendo ser simpático para o dono, enganara-o durante todos estes anos. «Espelho mau, espelho cruel,...» Gritava o homem desesperado, arrastando-se pelo tapete da sala. Já não era ninguém, pensou, «fui ultrapassado pelo tempo, esse cancro maldito, e atraiçoado por uma amálgama de estanho e vidro.» Era toda uma auto-estima que caía por terra naquela tarde.
Dias mais tarde, estando aborrecido e em baixo, talvez um domingo à tarde, que era quando ponderava mais seriamente as ideias suicidas, o homem decidiu, assim sem mais nem menos, sair à rua para passear. Desta vez porém, iria vestido de mulher. Quando se sentou na esplanada do café que habitualmente frequentava, cruzou a perna e acendeu o cigarro que dependurava preguiçoso de uma boquilha. Pediu um vermute, que beberricou enquanto ia soltando, cheio de estilo, argolas de fumo. Sentiu um olhar posto em si que o observava em todos os movimentos; era a Rita. Voltou-se, e os seus olhares cruzaram-se por um instante. Ela corou muito, mas ainda assim lançou-lhe um sorriso malandro. «Ah! Ainda estou em jogo...» pensou ele satisfeito. Gradualmente sentiu o amor-próprio a regressar.

O Comprimido

| segunda-feira, 7 de setembro de 2009 | 2 comentários |
«Temos que cumprir o horário.» Era assim que Abrenúncio desfrutava agora a sua vida: a cumprir o horário. Eram muito importantes os horários; diziam-nos sempre onde estar e as horas certas para se estar lá. «A produção meus senhores, a produção é tudo...» Gritava o capataz enquanto circundava os cubículos «a produção não pode parar» acrescentava sempre no fim. «E eu que pensava que era o espectáculo que não podia parar» reflectia Abrenúncio. E então produziam, produziam muito. Produziam até se esquecerem do que estavam a produzir. Quando não estava a produzir estava em filas para o transporte de regresso a casa. Eram tão obrigatórias como cumprir o horário, as filas. Um jantar plastificado, uma cerveja quente e um pouco de entretenimento embrutecedor e estava pronto para mais uma jornada no mundo real, na maravilhosa da realidade, disponível em qualquer banca perto de si.
«Vamos lá meus senhores, vocês são a minha máquina oleada, a produção não pára...», de novo o capataz e a sua retórica infalível; eles eram a máquina e ele o condutor. «Matá-lo seria fácil» fantasiava frequentemente Abrenuncio «Depois,...Tomava o comprimido vermelho e acordava verdadeiramente para a vida.»
Após cumprir o horário, Abrenúncio dirigiu-se à enfermaria e queixou-se de dores de cabeça e pensamentos negativos. As dores cabeça nem tanto, mas os pensamentos negativos eram altamente desaconselháveis à produção. A enfermeira remexeu o dispensário e entregou-lhe um comprimido; vermelho desejou Abrenuncio de olhos fechados, mas não: era branco, como o coelho da Alice. Tomou-o e dirigiu-se para a fila dos transportes. Sentiu-se muito mais conformado.

O Dia Z

| sexta-feira, 4 de setembro de 2009 | 4 comentários |


O dia que Zeferino temia chegara sem se fazer anunciar. O vazio enchera-lhe a mente. A sua cabeça era como um túnel onde se cruzavam ventos a mais de trezentos quilómetros horários. As ideias eram atropeladas e não conseguiam agarrar-se às paredes do cérebro. Era o fim, o branco, as reticências...
A sua carne estava amolecida e tenrinha, como se tivesse sido martelada por um bando de skinheads com tacos de baseball. Na televisão, a Manela, com a sua boca de enxarroco vomitava postas de pescada e dava azo à mais recente histeria nacional. Os porcos olhavam para os humanos e não conseguiam disfarçar um certo sorriso zombeteiro.
O espírito de Zeferino, esse eufemismo sináptico, tinha encontrado uma nova paz, um novo descanso; uma espécie de nirvana mas sem o Kurt. Sentia-se cansado, mas daquele cansaço bom. Voltou-se para o lado, de costas para a televisão, soltou uma flatulência e adormeceu.

A Consulta

| quarta-feira, 2 de setembro de 2009 | 6 comentários |
- É este peso nas costas doutor, este peso que me encurva e me faz arrastar os ossos de bar em bar, de garrafa em copo...
- O senhor não tem nada nas costas, o senhor em primeiro lugar é parvo e depois tem tudo dentro da cabeça, e...segundo os meus registos tem também um karma dos mais pesados do país. O seu mal portanto é ser cabeçudo com mau karma, daí que o corpo lhe penda para a frente.
- Mau karma doutor? O senhor sabe que eu não acredito nessas coisas.
- Pois, eu também não sou doutor e no entanto o senhor não se cansa de me chamar assim. O senhor anda há anos a carregar o que nós na profissão chamamos de peso morto. Todo esse lixo que o senhor carrega dentro de si, essas pessoas que carrega consigo que não lhe merecem a boleia, todas essas lúgubres memórias, tudo isso é triste, tudo isso é lixo, tudo isso é fraco.
- Humm! Mas convenhamos doutor, não é assim tão fácil livrarmo-nos de memórias que nos custaram tanto a criar, a viver digo...
- O senhor gosta de Notre-Dame?
- Eu??? Mas porq...
- É que lhe está a crescer uma corcunda aí no cimo das costas.
- Diga-me depressa doutor, o que fazer?
- Primeiro: não me chame mais doutor.
- Check!
- Segundo: o que senhor precisa é dum clister cerebral.
- Um clister cerebral doutor? Mas então e isso aplica-se da mesma forma que...
- Não seja estúpido.

Exit

| segunda-feira, 31 de agosto de 2009 | 4 comentários |


«Não existe saída deste deserto, pois não?» perguntou Anacleto ao tuaregue. «Enquanto estiveres armado em camelo, não!» respondeu o tuaregue que era formado em altas filosofias e matemáticas, mas que de caminhos só conhecia um, o seu. Entretanto sentou-se e iniciou um conhecido ritual, - estava na hora do chá.
«Chá de menta?» ofereceu a Anacleto que aceitou de pronto. «Andas a dormir estrangeiro Anacleto. Estás a dormir agora mesmo; procuras uma saída no deserto e olhas para mim quando devias era olhar para ti próprio...» o outro continuava a olhar para o “Abandonado de Deus” naquela forma que era peculiar aos bois quando defronte de palácios. Beberam o chá e sentiram-se melhor, mais frescos. «Devo então seguir para ocidente portanto» balbuciou Anacleto tentando mostrar-se entendido no assunto. O tuaregue, cansado de tanta teimosia, jogou a mão ao alforge e retirou de lá um bússola que entregou ao ocidental. «Toma, é tua, deve chegar para encontrares a saída». De pé, Anacleto segurou a bússola na palma da mão e constatou de imediato que esta estava avariada: para onde quer que se virasse a seta apontava sempre para ele.

O Desacato

| quarta-feira, 26 de agosto de 2009 | 0 comentários |


Um dia, estavam todos a reunidos, numa festa de anos ou noutra ramboia qualquer, quando o mago a título de piadola, transformou, para pasmo geral dos convivas, a água em vinho. Erro crasso número um. Aquela malta gostava mais de vinho do que da própria mãe, havia até quem fosse capaz de a trocar por um jarro do belo néctar. A principio tudo correu bem, enquanto foram só anedotas e boa disposição, mas depois começaram a dissertar sobre política e aí a situação azedou. Uns era a favor da ocupação romana, por mór do comércio, do cosmopolitismo e da estabilidade que era viver entre os mais modernos dos homens. Ah, mas os outros, os que não queriam os estrangeiros entre eles, arengavam desditas sobre a falta de respeito dos ocupantes pelo deus único, pelos seus costumes, e ainda havia os impostos, os malditos impostos. E as mulheres que eram obrigados a sofrer com os piropos execráveis dos legionários? Lembrou outro. Não podia ser. «A tua mulher parece não se importar, até gosta» lançou um dos partidários de César. Foi a gota de água, que transbordou o copo de vinho. Num ápice começaram cadeiras a voar e partiram-se jarros de forma a adaptá-los em objecto cortante. O dono do estabelecimento, vendo o prejuízo crescer a cada segundo, apelava à calma sem resultados positivos. O mago, exibindo um ar superior virou-se para o comerciante «eu vou-te mostrar como isto se faz», e nisto pôs-se no meio da confusão de braços abertos. «Ordeno-lhes que parem em meu nome!» Nem chegou a ver a cadeira que o atingiu na cara e lhe partiu o nariz. A partir daí, encolhido no chão, e como não tinha opinião sobre a matéria, apanhou dos dois lados. Ficou muito mal tratado.
Quando o Centurião exigiu que lhe explicassem como todo aquele desacato havia começado, disseram-lhe simplesmente que, aquele que jazia inconsciente no chão tinha transformado a água em vinho. «Patranhas!» rosnou o Centurião. O que é certo é que a história se espalhou e transformou-se como o vinho, e ainda hoje os povos se espantam com o maravilhoso feito.

A Massa Informe

| segunda-feira, 24 de agosto de 2009 | 4 comentários |

Olhou para o fim da rua e, onde antes batia o sol matinal, na parede caiada da tasca do caldo verde, havia agora uma roda de movitrons, paredes meias com contentores de lixo em cima dum inexistente passeio. Arrghhh!!! a raiva que aquilo lhe dava. Um pouco mais abaixo, o largo e as suas árvores. O largo já não era largo, era um parqueamento de movitrons, e as árvores, parquímetros. Havia-os em toda a parte. A Cidade pouco a pouco foi desaparecendo, dando lugar a uma massa informe de metal, borracha e fibra de vidro, toda envolta numa névoa pestilenta e venenosa. Os cidadãos sem se aperceberem, apesar de serem coniventes, acabaram com a vida na Cidade, entregando-se a uma espécie de existência amorfa, como ratos num labirinto que começa mas nunca acaba. Ah! Pensava o homem, se havia Cidade merecedora dum castigo bíblico era aquela. Um dilúvio para limpar as ruas, um terramoto para abalar as suas fundações e no fim, o proverbial fogo celestial para purificar toda a minha gente. Riu-se do alto do seu ateísmo: eis uma prova da inexistência de Deus, a existência desta Cidade. Não se coibia de fantasiar sobre os castigos a infligir aos habitantes da Cidade, divinos ou não. «Cometemos o mais grave dos oito pecados mortais – o da Estupidez.»

O Farol

| quinta-feira, 20 de agosto de 2009 | 0 comentários |

Pessoalmente sentia-se um farol. De olhos abertos à noite alertando as almas perdidas para que não se aproximassem muito dos vivos. Passava as suas temporadas de vela assim; de braços abertos, estático, a falar com os mortos. Os mortos visitavam-no à beira da cama todas as noites e faziam-lhe companhia. Discutia sobre política, e outros assuntos que interessavam aos mortos. Não percebia nada de futebol, nem sequer se interessava pelo jogo, mas começou a ler os jornais da especialidade só para ter o que dizer à noite. Os mortos gostavam de bola. Às vezes os mortos perdiam-se pelo caminho, e não dariam com ele não fosse a luz dos seus glezes insones iluminar toda a noite penada. Os vizinhos queixavam-se do barulho das cadeiras a arrastar e da conversa que se prolongava até de madrugada, às vezes chamavam a polícia. A sua reputação no prédio já não era das melhores, e aquelas temporadas zombie só o prejudicavam ainda mais.
Só descansava uma vez por semana, ao domingo. Que era o dia em que os mortos visitavam os seus familiares. Era também o dia em que se sentia mais só.

A Obra Prima

| quarta-feira, 19 de agosto de 2009 | 2 comentários |
Ildefonso procurava todos os dias a inspiração para o seu grande surto criativo. A grande obra, aquela que faltava ser escrita, ia ser a sua obra prima. Todos os dias ia beber café ao mesmo sítio. Sentava-se sempre na mesa do fundo. Fumava cigarros e observava a vida acontecer à sua frente. Queria captar a realidade das emoções, o instante da angústia, a iminência do sofrimento. Tinha um bloco preto onde tirava apontamentos e anotações sobre personagens e enredos. Às vezes descrevia momentos caricatos que se desenrolavam à sua frente; o casal que desmanchava o namoro, a mulher que apanhava o marido a olhar para as pernas da empregada de mesa, o jovem que saía de fininho sem pagar a conta. Inúmeros cafés depois e muitos cigarros fumados, voltava para casa onde jantava e ficava o resto da noite a rever os apontamentos. Por mais que uma vez sentara-se à máquina de escrever e iniciara a escrita daquele que iria ser o maior romance da história, mas, como as duas primeiras linhas nunca estavam à altura de tal epíteto, depressa rasgava a folha e ia deitar-se. Rasgava muito Ildefonso. Mais que um escritor, Ildefonso era principalmente um rasgador. Mais que rasgador era ainda um sonhador. Chegava a manhã e Ildefonso retomava a sua rotina. Desfazia a barba, vestia-se muito aprumado e seguia para o seu posto de vigia. Muitos cafés, muitos cigarros, muitos apontamentos depois retornava ao remanso do seu canto. Havia ainda muito que rasgar até o parir da obra-prima.
No café, as pessoas viam aquele homenzinho, aquela fraca figura, a fumar, a beber café e a tirar apontamentos muito nervoso e tinham pena dele; da sua solidão. Chamavam-lhe “o maluquinho”. «Qualquer dia mata-se» afirmavam alguns, «E não deve tardar muito» alvitravam outros. «Desde que não seja cá dentro,...» rematava sempre o dono do estabelecimento.

A Carta

| terça-feira, 18 de agosto de 2009 | 0 comentários |
Todos os dias ao sair de casa, Abrenúncio abria a caixa do correio e examinava-a rigorosamente só para chegar à conclusão que a carta ainda não tinha chegado. Depois do dia de trabalho, quando regressava ao lar, abria novamente a caixa e com a mão perguntava ansioso pela carta mas a resposta da caixa era sempre o vazio. O carteiro podia tocar sempre duas vezes, mas quanto a passar pelo mesmo sítio, só passava uma. Às vezes saía para correr; o jogging solitário fazia-lhe bem, arejava-lhe as ideias e regulava-lhe a ansiedade. Ansiedade esta que voltava imediatamente quando, antes de entrar em casa, Abrenúncio voltava a conferir a caixa postal. Mesmo ao fim-de-semana, mesmo sabendo que o carteiro estava de folga, Abrenúncio procurava pela carta. Eu, que estou a escrever este texto, sei com certeza absoluta que a carta nunca chegará, mas Abrenúncio é movido por uma força própria. Uma força que tem origem na esperança ou talvez no desespero. Não sei dizer.

Coragem

| segunda-feira, 17 de agosto de 2009 | 0 comentários |

Escreveu a carta de despedida e foi embebedar-se para o bar para ganhar coragem de a entregar. Começou com shots de whisky perseguidos por imperiais e acabou na coboiada que era o vodka gelado só com umas gotas de limão. Era o aniversário de alguém mas a partir de uma certa altura era ele que mandava vir e pagava as rodadas. Cantou com a banda residente e dançou apertado com as bailarinas de serviço. Toda a gente lhe dava palmadinhas amistosas nas costas e em pouco tempo arranjou um grupo de novas amizades etílicas. Ao fim da noite, já descamisado, sorvia shots de gelatina em cima da barriga lisa de uma jovem cujo nome ignorava.
No outro dia acordou como se tivesse presidido ao apocalypse. Não se lembrava de absolutamente nada da noite anterior, apenas da carta que continuava em cima da escrivaninha. Meteu-a no bolso e foi direito ao bar; precisava urgentemente de duas coisas: matar a ressaca e ganhar coragem...

Workout

| sexta-feira, 14 de agosto de 2009 | 0 comentários |
Meteu-se-lhe na cabeça que se exercitasse o corpo o suficiente para se transformar numa espécie de Deus grego, acabaria por encontrar a sua alma gémea. Vai daí, todos os dias corria que nem um louco à volta do quarteirão, levantava pesos à bruta, fazia flexões animalescas e abdominais dignas de um Tarzan. Esforçava o corpo para além dos limites aceitáveis, mesmo pela Confederação Nacional de Esforçadores de Corpo. Tinha que se manter em forma para quando a encontrasse. Sentia que o dia estava perto, e como tal, cada vez corria mais, cada vez mais rápido, como se quisesse apanhar o dito dia um pouco mais à frente. Chamemos-lhe ironia do destino, ou coincidência se quisermos ser mais cépticos, mas, o que é certo é que o dia chegou rápido. Andava ele a passear/exibir-se no shopping de Parvalheira City, quando no meio da multidão eis que ela se aproximou em câmara lenta com os olhos postos nele, como se também ela há muito o esperasse. Chegaram-se perto um do outro, quase à distância de um beijo esquimó e sorriram enternecidos. O coração dela acelerou muito ruborizando-lhe as faces. O coração dele acelerou muito e parou.

O Dom

| quinta-feira, 13 de agosto de 2009 | 0 comentários |
Felisberto nascera com um dom peculiar. Não conhecia a dor. Os médicos bem lhe deram umas valentes palmadas, mas ele, limitou-se a sorrir. O sorriso era outro dos atributos que diferenciava Felisberto do mais básico dos bípedes. Era como que redentor. Tinha propriedades regeneradoras e curativas. Quando alguém ficava muito doente lá no bairro, logo clamavam por Felisberto para que viesse acudir. E Felisberto acudia. Bastava-lhe chegar-se perto do enfermo, dizer-lhe uma ou duas palavras de consolo,sorrir como só ele conseguia e pronto. Ora, a palavra cedo se espalhou pela Cidade e a vida de Felisberto tornou-se num corrupio.Toda a gente se aproveitava do dom de Felisberto; dos mais ricos aos mais pobres. E assim lá ia fazendo a sua vida; sorrindo. De manhã, ao acordar, ia sempre à janela cumprimentar o astro-rei, e, logo se deparava com uma multidão de boémios, foliões e outro tipo de marialvas que ganharam o hábito de dormir por debaixo da varanda de Felisberto. Era matemático. Um sorriso e, adeus ressaca. Nas campanhas eleitorais era também muito solicitado pelos autarcas, para que sorrisse aos munícipes em vez deles. As eleições resultavam invariavelmente num empate mas nunca ninguém se aborrecia com o sucedido. A felicidade de Felisberto era uma espécie de poção mágica que abrangia toda a Cidade.
Um dia porém, andava Felisberto a passear pelos jardins da Cidade quando foi acometido por uma urgente necessidade natural. Como não houvessem balneários por perto, decidiu aliviar-se, ali mesmo, atrás de um belo arbusto. Ah! O alívio imediato. No entanto, quando puxava incauto o fecho das calças para cima, um incidente ocorreu: Felisberto prendeu a pila. Uma dor lancinante (que o fez ver: primeiro branco, depois todas as cores do arco-íris) percorreu-lhe a espinha. Com as lágrimas a rolarem-lhe copiosas pela face, Felisberto sentiu que algo havia mudado radicalmente na sua vida. No dia seguinte, ao acordar com a maior ressaca da história, a Cidade constatou o mesmo.

O Diálogo

| quarta-feira, 12 de agosto de 2009 | 2 comentários |
-Então e agora?
-Agora? Nada. Agora merda.
-Como é que te vais safar?
-O futuro? Oh pá, sabes que a merda do futuro é não sabermos onde ele começa. Se eu soubesse do futuro não estava aqui, por outro lado, estar aqui é concretizar o futuro de ontem quando ainda era presente, antes de se tornar no passado de hoje, percebes?
-Não.
-Pois pá, é uma merda. A mim o que me apetece é entrar por ali adentro, de lança-chamas na mão e mostrar-lhes o inferno que há em mim...Depois eles logo viam“Ah! quem diria, era tão bom rapaz”. Bom rapaz, pfff...Eu sou é um animal enjaulado.
-Um bocado radical não? E violento.
-Radical o caraças,...um gajo se não diz nada é porque é parvo, mas depois vai acumulando, acumulando e, quando já não aguenta mais,... lá está, é radical.
-Já tentaste a via legal?
-A via legal? Ahahaha. Olha, o Romualdo 'tá aqui embaixo há um tempão e até agora não encontrou culpados. Achas isto normal...a justiça, tsss, a justiça é como o caviar, só sabe bem aos ricos.
-Devíamos ir embora, as pessoas já começaram a reparar.
-Pois. Isto de falar sozinho só atrai homenzinhos de bata branca.

A Culpa

| terça-feira, 11 de agosto de 2009 | 0 comentários |
De quem era a culpa? Era a pergunta que se impunha e que Romualdo tardava em responder. Em primeira instância a culpa não era de ninguém. A ser de alguém só podia ser de Deus, o grande criador e iniciador de todo este movimento perpétuo de atribuição de responsabilidades. No parecer introspectivo de Romualdo, a culpa apresentava-se em vários patamares ou círculos como no Inferno. A culpa pode começar no patrão, como observou Romualdo a certa altura, mas acaba sempre no empregado, que, bem domesticado, arca com toda a culpa e suas consequências, convencido de que este será um acto maior de dignidade. Pobre coitado que só na ignorância é honrado.
Romualdo revolveu e voltou a analisar todos os depoimentos, mas a dúvida não o largava. Como descobrir a culpa numa sociedade onde ninguém é culpado? Seria a culpa da senhora que não viu o carro em excesso de velocidade? Seria a culpa dos operários que pintaram mal as passadeiras? Seria a culpa do homem que vinha ao telefone e não viu o sinal de aproximação de passagem para peões? «Ah!» Suspirava Romualdo «não há solução».
«A culpa é de toda esta gente, quem é que lhes mandou nascer?» alguém, a quem o chá havia esfriado, gritava a sua indignação. «Pois pá, estes gajos nem deviam ter nascido com olhos, por isso calem-se e vão para casa» - Agora era o enfadado proprietário de um veículo topo de gama que se exaltava no engarrafamento. Romualdo tirava apontamentos no seu bloco de notas feito de medida para dilemas obscuros. Olhava nervoso em volta, enquanto secretamente desejava que de súbito surgisse uma qualquer entidade superior, uma deidade, que o livrasse daquele imbróglio, daquela dúvida. Um mordomo seria o ideal.

Os Carimbos

| segunda-feira, 10 de agosto de 2009 | 0 comentários |

O comboio transpõe o recorte das altas montanhas e Anacleto sente finalmente o embate da realidade. A estúpida da realidade, a acelerar nos carris, a desbravar sonhos e aventuras. Arrepia-se-lhe a pele. Pressente o regresso à sua condição de burocrata acinzentado, e isso entristece-o sobremaneira. Olha para as unhas amarelas do tabaco e ri-se da ironia por estas combinarem com as amareladas paredes do arquivo, onde são guardados todos os papéis químicos do mundo, junto com os duplicados de todas as coisas aborrecidas do mundo que foram inventadas para castrar todas as pessoas alegres do mundo. Anacleto tropeça num companheiro viajante e pede-lhe desculpa, depois repete o pedido. É a transformação que começa a dar-se; tudo em duplicado. «Com licença, com licença» a primeira via pode extraviar-se é sempre bom ter um comprovativo. A voz rouca e a poeira nos sapatos são os últimos indícios dum sonho que foi curto. Agora está na hora de lavar a cara, apertar a gravata; o mundo precisa de documentos, de ofícios, de questionários de inquéritos, de dossiers e de muitos funcionários, muitos, todos armados com tinta da china, preparados para carimbar a humanidade até à última réstia de bom senso.

O Exílio

| quinta-feira, 6 de agosto de 2009 | 0 comentários |

O suave espraiar das ondas debela lentamente as fundações do castelo. A areia que o fortifica esvai-se a cada espumoso abraço do oceano. Os aldeões, unem esforços coordenados para travar o assassino avançar da natureza. O que é preciso para salvar a fortaleza? Areia molhada. Onde a encontramos? Junto ao mar. Pois!
Dão tudo de si estes bravos operários do inevitável. A sua fé deteriora-se no minuto seguinte mal vêem o seu esforço ser ignorado pela bruteza do mar.
Aos poucos começam a desertar de si próprios: para quê? Questionam-se. O mar é sempre o mesmo e não vai mudar por nossa causa.
«Isto é um trabalho para Gulliver!» grita um. «Ah! Isso são histórias da carochinha, ninguém vai aparecer, nunca ninguém aparece, estamos sozinhos outra vez.»
Ordeiros, em pequenas filas, abandonam o castelo que finalmente se esvai na maré. Dizem adeus às armas e seguem por caminhos diferentes.
«Foi bom enquanto durou!» afirma um. «Achas mesmo?» dúvida outro mais céptico. Dúvidas, receios, interrogações; tudo sentimentos que povoam a multidão de exilados que se dispersa pelas dunas. É toda uma procissão de degredados que abandona a costa, mas, àquela distância ninguém nota.

O Enfermo

| terça-feira, 4 de agosto de 2009 | 4 comentários |
Absorto na sua enfermidade quasi paralisante, Abrenúncio nem deu por ela chegar. Com os seus pezinhos de chinesa e modos de gueixa, tratou-o com a delicadeza de um ser etéreo que se nos escapa quando tentamos agarrá-lo. Esteve com ele, como se está com as pessoas doentes, permitindo-lhe todos os humores e desvarios. Foi mais que sua enfermeira. Foi todas as mulheres da sua vida, não sendo nenhuma. Concentrava-as todas numa só. Às vezes, noutros tempos e noutros lugares, encontrava-a sempre bem acompanhada de mancebos que, talvez estivessem doentes ou não. E só por isso, reservava-lhe um pedacinho de rancor por entre ventrículos e aurículas. Queria defini-la numa palavra, mas a única que lhe surgia amiúde era: saudade. Como não havia forma de a descrever nem sequer de a entender, referia-se a ela como: aquela-que-não-me-é-nada.

Like Tears In The Rain

| segunda-feira, 3 de agosto de 2009 | 3 comentários |

O Corte

| quinta-feira, 30 de julho de 2009 | 2 comentários |

Como não lidava bem com a rejeição, rejeitava antes de ser rejeitada. Para Zelmira o mundo era um sítio hostil, governado por deuses de dentição ofuscante e porte espadaúdo. Atravessava as ruas com a timidez própria de quem não se sente entre iguais. Sentia que a sua aparição em público era algo pouco tolerado pelos outros, os perfeitos. Por todo lado deparava com a felicidade de mãos dadas com a boa semelhança. A sua dor era não tanto a rejeição a que os outros a votavam, mas mais a exclusão a que ela própria se obrigava.
Quando chegava a casa, ao fim do dia, revia mentalmente as suas frustrações e por cada uma delas, abria um corte no corpo. Pernas e braços expunham-se cicatrizados como um mapa rodoviário do sofrimento. De solidão falavam os cortes mais profundos, invisíveis ao olhar; os sofridos no interior de si, no âmago do seu ser. Os pistoleiros costumavam talhar o cabo do revólver, por cada morte obtida em duelo, os pilotos da primeira grande guerra faziam o mesmo. Ao pôr-do-sol, no final dos duelos e poisadas as máquinas voadoras, os guerreiros repousavam junto das suas amantes e amadas e faziam amor. Ao mesmo tempo, noutra época do futuro, ou talvez do passado, Zelmira bebia chá e fazia amor com quem lhe dava mais atenção: o canivete.

É Agora

| quarta-feira, 29 de julho de 2009 | 4 comentários |

No meio de tanto desespero, encheu-se de coragem e resolveu matar-se. Assim mesmo, sem mais nem ontem. Pagou o café e saiu do café para ser ainda mais redundante. Seguiu pelo emaranhado de lojas num passo decidido. As suas passadas marcavam um compasso pesado, militar, um tudo nada wagneriano. «Mas isto lá é vida para alguém?» cogitava em voz alta através da torrente de pessoas que se afadigavam no consumismo domingueiro. «Olha, mais um!» reparou um jovem que saía dum MacColestrol. «Só querem dinheiro, só dinheiro, mas onde é que isto vai parar?» perguntava-se o homem enquanto agitava o punho com fúria em direcção aos cartazes publicitários. «Queres dinheiro? Pede ao Cotta!» anunciava um outdoor gigantesco junto à rotunda onde dois jovens muito cool exibiam os cartões de crédito às namoradas.
Andou sem rumo algumas horas, pensando na melhor maneira de por fim à sua vida. Mas a desorientação era tal que não conseguia decidir-se, e, entrava e saía dos estabelecimentos sem tomar conta por onde havia passado. Sentou-se numa cadeira perto da linha dos comboios e finalmente determinou:«É mesmo aqui! 'Tá feito e não mexe». Ouviu o som característico do apita-o-comboio, aproximou-se da linha e pôs-se em posição. Ao fundo, como que vinda do nada, a automotora surgiu em toda a sua fúria mutiladora. «É agora!» murmurou o homem. Quando ia fechar os olhos, preparando-se assim para o embate final e subsequente escuridão, vislumbrou um cartaz do outro lado da linha que anunciava: “Agência Funerária DIAS – Porque Há Dias Assim”.

A Chamada

| terça-feira, 28 de julho de 2009 | 4 comentários |

«Aguarde um momento por favor!...». Zeferino aguardava impaciente que a telefonista completasse a ligação. Telefonava-lhe do passado, onde tinham combinado encontrar-se. Ela estava uns quantos anos atrasada. Zeferino mostrava-se ansioso; tinha passado tanto tempo, havia tanto para falar... E por isso ali estava ele, naquela cabine telefónica ao canto da rua, ainda à espera. «É só mais um momento por favor!..» «concerteza!». Acendia cigarros para passar o tempo, a névoa do tabaco ajudava-o a pensar, a ordenar as ideias. «Aguarde por favor!...». Primeiro ia perguntar-lhe porque não apareceu ao encontro e não o avisou; depois o porquê de nunca mais ter dado notícias, e, mentalmente ia apontando as perguntas que surgiam cada vez que a telefonista o mandava aguardar. As malditas chamadas intemporais eram uma chatice. Relativamente fáceis do futuro para o passado mas um aborrecimento quando o fluxo era o inverso. «É das válvulas» como diria o outro. E assim estava Zeferino, a acender cigarros e a desesperar quando finalmente a chamada passou «Sr. Zeferino, está em linha, pode falar». Encheu os pulmões de ar e de coragem e o que lhe saiu foi: «Então! Ainda 'tás com fome? Queres ir ao italiano ou ao chinês?».

Sublimação

| segunda-feira, 27 de julho de 2009 | 6 comentários |
Tentava mexer-se o menos possível deitado na cama. O calor aquecia-lhe o quarto ao ponto da cozedura. Dava um bom cozido ele. Junto ao osso é onde a carne sabe melhor. A ventoinha há muito que dera o último suspiro. De tanto trabalhar, um dia baixou as pás e foi parando devagarinho. Foi uma morte serena, sem dor. O ar no entanto tornou-se mais pesado, e o suor, mais peganhento. As janelas estavam fechadas por causa do vizinho que era quase surdo e tinha o som da televisão sempre nos píncaros. Não conseguia dormir por causa do barulho mas estava sempre a par dos enredos das novelas. Chorou quando a Zurineide Sueli deixou o Tonhão Raimundo para se casar com o filho do Coronéu.
O pior era acordar sempre encharcado em suor; mas disso já não tinha a certeza se era do calor, dos pesadelos, ou da ressaca. Bebia vodka para acalmar uma tempestade de mágoas e ao mesmo tempo sentia que se afundava nelas; sem bóia, sem braçadeiras, sem salva-vidas. Bêbado, escrevinhava num bloco de papel, planos maquiavélicos para matar o velho. Sóbrio, não conseguia decifrar os gatafunhos da noite anterior.
Os cães uivavam noite fora e no quarto ele dissipava-se lentamente, deixando apenas uma sombra, que se fundia no colchão como lágrimas na chuva.

A Troca

| quinta-feira, 23 de julho de 2009 | 2 comentários |
«E tu, que fazes por estas terras marroquinas?». Perguntou o poeta ao vagabundo. «Olha, trabalho, coisa que pouco me orgulha». Já não se encontravam havia anos. O lírico fechara-se no seu quarto para se curar de uma pequena depressão que foi crescendo e, em menos de nada atingiu a idade adulta. O vagabundo, apagara as luzes do seu país e partira à aventura, calcorreando este mundo e pedaços do outro. Era uma espécie de reencontro de familiares há muito desavindos; não sabiam muito bem o que dizer um ao outro e ambos mediam-se de cima abaixo. «Está mais velho» pensava um. «Continua na mesma» reflectia o outro. Sentaram-se a beber chá e trocaram notas sobre as suas desventuras. O mundo dera as suas voltas. Espantava-se o poeta, que agora transpunha fronteiras, de encontrar o seu amigo agrilhoado às sevícias duma lida rotineira. «O que é que se há-de fazer?». Era verdade, não havia nada a fazer. Ali, naquele deserto saint-exuperiano, tinham trocado de lugar.

A Escadaria

| quarta-feira, 22 de julho de 2009 | 2 comentários |

Anacleto sentiu por segundos uma incomensurável tristeza. Carregava sozinho a enorme máquina às costas e ainda lhe faltava subir muitos lanços de escada. A pesada máquina era desproporcional ao seu corpo franzino e não poucas vezes Anacleto se desequilibrou. Não podia apoiar-se uma vez que tinha as mãos ocupadas. Os braços tremiam-lhe assim como as pernas. Olhou para baixo e chegou a pensar em desistir, mas o caminho de regresso apresentava-se tão distante como o que lhe restava. Estavam à sua espera mas ninguém o ajudava. Gotículas de suor formavam-se na testa e escorriam avulsas rosto abaixo. O suor queimava-lhe os olhos. A imensa solidão queimava-lhe a alma. Não queria estar ali naquele momento e nunca antes sentira tanto a vontade de ser outra pessoa. Subiu mais um degrau e a máquina pressionou-lhe ainda mais a espinha. Encontrava-se praticamente dobrado sobre si próprio. A máquina era possuidora de uma vontade própria. Queria vê-lo quebrado, desfeito. Queria vê-lo a implorar, a desistir. E por isso tornava-se mais pesada a cada passada. Ele compreendia a máquina; compreendia que as suas vontades eram concorrentes. Não obstante serem inimigos, partilhavam um mesmo fado, uma mesma escadaria, uma mesma meta. De certa forma eram cúmplices. E foi ao descobrir a súbita quase-empatia pela máquina que, Anacleto, sentiu apoderar-se de si, uma vastidão de angústia.

A Síndrome de Pilatos

| terça-feira, 21 de julho de 2009 | 2 comentários |
Abrenúncio saiu de casa à pressa. Já estava atrasado para o trabalho. Desceu as escadas a correr e quando já dava à ignição do carro, lembrou-se de todas as pessoas que haviam tocado no corrimão naquele dia. Voltou para a casa em modo rapidíssimo e lavou energicamente as mãos: «mais vale prevenir que remediar». Chegou ao trabalho e seguiu para o seu cubículo de cabeça baixa evitando qualquer contacto com os colegas. O chefe de secção (e seu amigo) que andava há dias atrás dele para saber do andamento de certos relatórios, esticou-lhe a mão em cumprimento: « O que é feito de ti homem?». Abrenúncio, evitando claramente o aperto de mão, penteou o cabelo com os dedos e entregou de seguida os relatórios ao homem. A sua acção não passou despercebida, pelo que o Chefe logo o notificou por ter chegado atrasado. À hora de almoço, quando ia levantar dinheiro no multibanco, pensou nas pessoas que já haviam mexido na máquina e ficou agoniado. O que fazer? Olhou em volta e chamou um miúdo que andava por ali a brincar: «Dou-te dois euros se me fizeres um favor!» O miúdo disse que sim, que lhe levantava o dinheiro, e logo que se viu com o "guito" do outro na mão, desatou a fugir. Abrenúncio, com o estômago a dar horas, de volta ao edifícío onde trabalhava, deu de caras com Rita Lina, a miúda que andava a namorar há algum tempo. Quando esta o tentou beijar, Abrenúncio evitou a “bala” com um jogo de pescoço que envergonharia uma girafa. Recebeu uma chapada de mão aberta como recompensa e pensou: «é por uma boa causa.» De volta ao cubículo deu consigo a pensar no estalo de Rita Lina «será que ela tinha as mãos lavadas?» A tarde passou-a em sufoco, em constantes viagens do cubículo para o lavatório, evitando as mãos esticadas dos colegas pelo caminho «mas esta gente não pensa?»
Deitou-se naquela noite, depois de um banho reforçado, contente consigo próprio:«mais um dia que passou sem problemas de maior».

Ainda Domingo

| domingo, 19 de julho de 2009 | 14 comentários |

Zeferino chegou à praia e estendeu a toalha no sítio que lhe era preferido: o bar. Ficava sobranceiro ao areal e tinha uma vista privilegiada sobre o oceano. Pediu um Mojito. Não que gostasse muito da bebida, mas vira o James Bond a fazer o mesmo num filme. Era domingo; o dia da semana que (de tão estúpido)foi reservado a Deus. Rezou para que uma Halle Berry lhe caísse no colo. Caíu-lhe o Mojito ao invés. Pediu outro, aquela história da hortelã era interessante.
Às 10h30 certas, começaram a chegar as famílias. Perante a imensidão do areal e a difícil escolha entre a esquerda e a direita, iam optando por ficar todas logo ali, em frente à passadeira. Assim dava menos trabalho a sair. À direita ficavam os surfistas, à esquerda as nudistas. As famílias ficavam ao centro para manter a moral e os bons costumes. As mães retiravam a trela aos filhos e deixavam-nos ir para beira-mar, ladrar às ondas. Os pais, alegavam um passeio para esticar as pernas e sub-repticiamente todos os seus membros viravam à esquerda. Os mais velhos arregaçavam as calças cinzentas e iam molhar os pés. Quando voltavam já a melancia rodava por entre sombrinhas. À direita os surfistas comiam croissants e suspiravam por tsunamis que nunca mais chegavam. Mais à esquerda, as nudistas giravam como sardinhas na brasa, e isso enchia de água, a boca dos paizinhos que esticavam as pernas.
Eram 12h00 e Zeferino perdera a conta aos Mojitos. Agora mastigava as folhas de hortelã lembrando um qualquer animal ruminante. Estava calor e Zeferino sentia-se com aquela felicidade que só o rum proporciona. Apetecia-lhe fazer surf montado num croissant, nadar por entre as sombrinhas e tirar as pevides às nudistas. Era ainda domingo, o dia que vem antes de segunda-feira.

O Aterro

| quarta-feira, 15 de julho de 2009 | 4 comentários |
Zeferino olhava para a cidade e entristecia-se. O que antes fora um local aprazível para se viver, brindado com o recorrente espectáculo do por-do-sol, hoje não passava de um mero galinheiro. Um aterro, melhor dizendo. As asneiras feitas em nome do progresso e o milagre da multiplicação dos corruptos, tinham conseguido tornar a cidade numa amálgama cinzenta de pó, cimento e esterco. De onde estava, Zeferino já não conseguia ver a casa onde tinha nascido, nem as ruas onde aprendera a andar de bicicleta. Agora só havia prédios e carros. Prédios onde moravam as pessoas que, tinham carros para se deslocarem até aos prédios. No antigo estádio de futebol, os dois candidatos digladiavam-se, na ânsia de assumir todo o poder e todo o exército de lambecusistas que lhe era inerente. Do pouco que assistiu, Zeferino viu, o candidato da Rua X a mastigar um bocado do nariz do candidato da Avenida Principal. Mas, num volte-face inesperado, o candidato da Avenida conseguira colocar-se numa posição de vantagem e arrastava agora o da Rua X pelas orelhas. O povo delirava ao rubro. Havia sangue, o povo gosta de sangue. As crianças, embrutecidas, comiam carne e rebolavam-se pela relva.
Zeferino recolheu ao quarto, agarrou numa folha de papel e começou a escrever:«Caro Eric, a tua profecia cumpriu-se: chegámos a 2009 e os porcos continuam a triunfar».

O Calor

| terça-feira, 14 de julho de 2009 | 4 comentários |
«Calor do caraças!». Era Labregoísio quem se queixava. Andava para baixo e para cima, no Palácio da Justiça a mover processos e outras caixas cheias de papelada para a cave. A cave era o único sítio onde os magistrados conseguiam trabalhar sem tirar a roupa. Há muito que as salas do primeiro e segundo andar eram um espectáculo para a população. Não porque se julgava o caso de um sanguinário serial killer, não. Quem enchia as salas, ia lá, não para ver a justiça ser feita, mas para poder ver a Assistente do Ministério Público em cuecas. Era algo que no meio do calor abrasador, distraía as pessoas.
Labregoísio gostava da Assistente do Ministério Público, a Eufrázia. Foi por ela que aceitara aquele trabalho a meio do verão. Foi também por causa da Eufrázia que destruíra o sistema de ar condicionado dias antes. Queria vê-la sem roupa. Já uma vez tinha tentado, numa saída à noite. Depois do cinema ele pediu para ela se despir e ela deu-lhe um estalo. Agora que ela finalmente se apresentava nos preparos que ele desejara, andava ele num vaivém intermitente entre a cave e o primeiro andar. «Não é justo!» resmungava Labregoísio no edifício onde todos se pautavam pela justiça. Subia e descia as escadas, com ar maldisposto e a camisa colada ao corpo, de vez em quando suspirava:«Calor do caraças!»

Os Bons Dias

| segunda-feira, 13 de julho de 2009 | 6 comentários |
Romualdo chegou a casa e bebeu duas cervejas de rajada. A sede não era muita, mas a vontade de beber era enorme. Passara o dia perdido nos meandros do Ministério das Boas Maneiras e Etiqueta. Precisava de uma licença para poder evitar cumprimentar os seus colegas todos os dias. Há muito que lhe custava aquele ritual diário de ter que dizer «bons dias» a todo aquele bando de energúmenos, que não lhe suscitavam a menor simpatia. Mais, o que lhe irritava mesmo era o falso humor que abundava na repartição logo pela manhã. As piadinhas à sua cara de maldisposto, as insinuações sobre a noite que passara, tudo pejado de risinhos, sussurros e muita mesquinhice cor-de-rosa.
No Ministério as coisas não tinham corrido pelo melhor. Um dia inteiro de espera. As senhoras dos guichets, imbuídas do espírito da tutela do Ministério, serviam chá e bolinhos a cada utente e perguntavam sempre pela família, antes de começarem a dar andamento aos requerimentos.
A felicidade e boa disposição dos outros irritavam-lhe sobremaneira. «Amanhã já não os vou aturar». Ria-se ao imaginar as caras dos colegas.Estava nisto quando encetou mais uma cerveja que “respirou” de imediato.

Sinais de Fumo

| sexta-feira, 10 de julho de 2009 | 5 comentários |
Havia vários dias que comunicavam por sinais de fumo. As comunicações convencionais tinham ficado fora de uso depois da descarga electromagnética. Como não havia dicionários de linguagem de fumo, e a prática estava ainda pouco difundida, eram frequentes os equívocos e mal entendidos. Especialmente ele, que sempre se baldara às aulas de Morse em Caso de Guerra, agora via-se completamente à rasca para perceber o que ela lhe queria. Passavam horas a tentar decifrar as missivas fumegadas por cada um. Àquela distância as mensagens cruzavam-se constantemente e o caos reinava na informação. A pouco e pouco o fumo dela foi-se desvanecendo no horizonte e acabou por se misturar com a fumaceira geral. Todos os dias ele levantava-se cedinho e acendia uma fogueira, mas do lado dela apenas se afigurava uma nuvem grossa e negra, uma soma do desespero que se fazia sentir pelas bandas setentrionais. Um dia acordou inquieto, ansioso, precisava mesmo de falar com alguém, mas para seu desalento acabara-se a lenha.

O Cansaço

| quarta-feira, 8 de julho de 2009 | 5 comentários |

Abrenúncio arrastava o corpo pelo caminho que lhe parecia cada vez mais longo. Os pés incharam o suficiente para que cada passada sua correspondesse a uma condenação. Os joelhos latejavam, invocando noites de humidade e relento. Maldito reumático. Malditos pulmões que já não respiram. Ainda era cedo. Era metade da sua vida ainda. Chegar a casa, fechar os olhos e dormir. Dez anos se possível...Não, vinte. Vinte anos era o ideal. Sentou-se a meio do caminho a fumar um cigarro e pensou como seria bom se pudéssemos dormir para trás. Adormecer hoje e acordar na semana passada. «Bah! É oficial, estalou-se-me a parvoíce» pensou Abrenúncio em voz alta. Um carro a alta velocidade passou por uma poça de água e deixou-o todo encharcado. Era o que faltava para completar o cenário. Estava a pouca distância de casa mas só conseguia pensar no cansaço. O cansaço que agora se distribuía por todo o corpo.

A Encomenda

| terça-feira, 7 de julho de 2009 | 6 comentários |
Chegou a casa e deu com a caixa em cima da cama. Uma encomenda. Primeiro desconfiou; como é que a caixa foi ali parar? Quem a enviou? Aproximou-se devagarinho e rodeou o objecto de vários ângulos. Era branca e não tinha inscrições. Seria uma daquelas encomendas-bomba que andavam a semear o pânico na Cidade? Não! Não podia ser. Até agora as bombas haviam sido todas detonadas no Sector Intelectual, e ele não passava de um mero operário da Fábrica de Replicantes. E se esta fosse a primeira de muitas bombas a explodir no Sector Operário? Humm, pouco provável. A única facção que lhes guardava rancor pertencia ao Sector Executivo, e esses, conheciam outras formas de lhes induzir sofrimento. Cheirou a caixa, como um sabujo, e não detectou odores químicos. Sentou-se ao lado da encomenda. Mentalmente travava uma batalha consigo próprio «abro, não abro, abro, não abro...». A curiosidade sempre fora um dos seus maiores fracos. Partiu o selo que fechava a caixa e com os olhos fechados abriu-a em câmara lenta. «Não explodiu» já era um bom sinal. Ainda assim abriu os olhos a medo, e depois, quase alarmado pôs-se de pé. Um livro? Já tinha ouvido falar daqueles objectos mas era a primeira vez que via um. Junto com o livro vinha um cartão. Segurou-o e reparou na letra que era feminina:«Pensa: Na vida nem tudo são horrores». Sentiu um rubor a espraiar nas faces. Sorriu e soluçou ao mesmo tempo. Seria aquilo a felicidade?

A Avaliação

| segunda-feira, 6 de julho de 2009 | 9 comentários |
Ildefonso estava prestes a ser avaliado. A avaliação apresentava-se mais como uma condenação esperada do que, com um julgar imparcial dos seus actos, do seu real valor. Todos os anos era submetido àquele martírio que rapidamente desaguava numa humilhação. A sala parecia crescer de tamanho cada vez que o supervisor desfiava as suas faltas, os seus pecadilhos, a sua deficiente assertividade. Cada vez que o homem lhe apontava o dedo, Ildefonso minguava um pouco, até tocar com o nariz nos calcanhares. Quando mais se agachava mais o espezinhavam, era um ciclo. Chegado ao fim o grotesco espectáculo que era a avaliação, o veredicto redundava sempre no mesmo: «não reuniu as condições necessárias para transpor de categoria». Depois, Ildefonso agradecia e saía amarrotado da sala. Este ano porém, nada iria ser igual. Este ano, Ildefonso levara uma caçadeira para a avaliação.

La Fiesta

| sexta-feira, 3 de julho de 2009 | 5 comentários |
As bancadas estavam completamente a abarrotar. A multidão acotovelava-se para arranjar um bom lugar. Naquele fim de tarde solarengo, toda a sociedade de Remulak – A Grande, comparecera ao evento mais badalado dos últimos tempos. Ao centro na bancada superior, os conservadores, fumavam os seus charutos e discutiam as últimas da economia macro-cósmica. Os seus criados, munidos de abanadores mantinham o ar fresco a circular. Na bancada da direita, mais perto da arena estavam os filhos dos conservadores. Estes bebiam coca-cola e fumavam cigarros de mentol, contavam piadas curtas uns aos outros e soltavam risinhos histéricos. A sua presença ali não passava de um frete que faziam aos seus pais, era bem conhecida a sua propensão para ambientes mais resguardados. Todo o lado esquerdo do ringue, zona superior e baixa, era ocupado pelos radicais do movimento “Força Bocage”. Estes eram incansàveis, sempre batucando em tambores e tangendo bandolins, geravam um ambiente que se assemelhava muito a uma concentração metafísica. Entre uma passa e outra nos cigarros mágicos das tribos do sul, gostavam de provocar os filhos dos conservadores com ditos espirituosos:«Ó betinho, vai p'ró Caralho!».
Sozinho na arena pontificava Romualdo – O Matador. Vestido de preto, apesar do calor que se fazia sentir, como a morte, esperava pelo momento do confronto final. Munido apenas do seu humor sarcástico e de um exemplar gasto do Arranca-Corações, Romualdo sentia-se preparado. Aquela era uma boa tarde para andar à porrada. Largamente apoiado pelo movimento “Força Bocage”, estes não se cansavam de gritar:«Soltem a Besta! Soltem a besta!». E sem mais, a Besta foi solta. O silêncio invadiu todo o ringue e arena como uma doença má. Sequer um suspiro se soltou. Romualdo olhou a Besta nos olhos e fez-lhe sinal que avançasse. A Besta soltou um grunhido. Ajeitou a gravata ao pescoço, encostou os dedos indicadores à testa e avançou bufando para o Matador que, já se encontrava em posição de lhe dar umas chapadas.

O Palhaço

| quinta-feira, 2 de julho de 2009 | 4 comentários |

Quando o palhaço Anacleto foi atropelado, o condutor seguiu caminho sem lhe prestar qualquer auxílio. Anacleto espalhado pelo chão tingia de vermelho a passadeira, conferindo-lhe um aspecto tricolor tão próprio do mundo circense. Como tinha tempo para isso, meditou sobre a sua vida de saltimbanco que agora parecia chegar a um término antecipado. Viu o sorriso das crianças nas longas tardes de espectáculo e os tombos propositados que tomava por causa delas. Lembrou-se dos elefantes e dos trapezistas, dos funâmbulos e especialmente das contorcionistas. Uma vez apaixonara-se muito à parva por uma contorcionista chinesa, mas esta padecia de amores pelo Magnífico Lambrini – o Mágico de serviço. Desgostado correu o mundo na sua roulotte, de palhaçada em palhaçada, pintando a dor de alegria, forçando gargalhadas nos outros.
As pessoas começaram a aglomerar-se à sua volta, como sempre acontece nos acidentes trágicos. Ao longe, muito ao longe, já se descortinava o tinóni da ambulância que o iria levar para a última morada; sim, ele sabia que estava de saída.
Nos últimos momentos pensou em como gostaria de ter confessado a alguém que, a morte acidental do Magnífico Lambrini não tinha sido nada acidental. A reminiscência desprendeu-lhe um último sorriso e assim se ficou, sorrindo, como só os palhaços tristes sabem. Como não estava pintado ninguém o reconheceu.