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A Máscara

| quinta-feira, 30 de abril de 2009 | 6 comentários |
Anacleto passeava-se pelas ruas desertas de Remulak-A Grande e regozijava-se com a ausência de pessoas. O pânico havia tomado conta da população que se tinha fechado em casa com medo da Sarna Vera. Uma doença peculiar esta que se tinha espalhado por todo o país. Cada vez que a pessoa infectada com o mal, dizia uma mentira, o corpo enchia-se-lhe de chagas avermelhadas que ardiam e provocavam ao paciente uma comichão intolerável. Como a maioria das pessoas foi infectada, as ruas foram ficando vazias. Não que as pessoas se importassem com o ardor ou até mesmo com a comichão, o que elas não suportavam era a vergonha de verem as suas mentiras a descoberto.
Anacleto, que mentira descaradamente toda a vida, tinha criado uma espécie de imunidade, e agora deambulava contente pela cidade. Longe das multidões ruidosas fez tudo o que sempre sonhara, com a benesse de não ter que se preocupar com dinheiro ou esperar em filas enormes. Ao chegar à rua principal, a rua das lojas, não se conteve e zigzagueou pelo empedrado fazendo a sua dança de contentamento, aos saltinhos de braços abertos. À memória chegava-lhe uma imagem de outrora: a dúbia personagem a rir-se na sua loucura.

Dois Mundos

| quarta-feira, 29 de abril de 2009 | 4 comentários |
A Cidade havia-se dividido em duas facções logo a seguir à revolução. Haviam os jovens que seguiam o movimento de Dan e os outros, os que seguiam a onda de Rhonda.
A primeira seita acreditava firmemente que o descendente do Salvador estava no meio de nós, e que, qualquer um podia ser Ele. Era cativante a ideia de um dia acordar e pensar «Sou O Messias». Esta seita era constítuida por uma população muito flutuante, uma vez que ironicamente, ao tentarem andar por cima de água, os seus seguidores geralmente afundavam-se, má sorte para os que não sabiam nadar.
Do outro lado das trincheiras militavam os seguidores do positivismo selvagem. Estes até tinham um hino à sua matriarca que não se cansavam de cantar: «Help me Rhonda, Help, Help me Rhonda...». Os adeptos desta facção acreditavam que se pensassem positivo, com muita força, a realidade transformava-se a seu gosto. Ouve logo quem se lembrasse de pensar muito positivo, sobre o regresso do saudoso ditador Salazar. E o homem realmente apareceu, só para voltar a desaparecer num ápice, uma vez que, aqueles para quem o velho ditador não era tão saudoso, pensaram positivamente em mandá-lo de volta. Diz quem assistiu que, a certa altura, havia um Salazar intermitente em cada esquina.
Apesar da Cidade estar dividida em duas, Dan e Rhonda por seu lado, eram amicíssimos. Encontravam-se uma vez por mês, para tomar chá e fazer um balanço dos lucros.

A Aplicação

| terça-feira, 28 de abril de 2009 | 0 comentários |
Só lhe apetecia dormir. Meu Deus, como lhe apetecia dormir. A senhora dos Serviços de Apoio Social não se calava, e ele, já não sabia em que posição se haveria de pôr para não adormecer. Estava ali por obrigação, todos os anos era a mesma coisa. A senhora dos Serviços sentia-se sozinha, e então convocava todos os representantes da colónia para discutirem o mesmo programa e as mesmas aplicações matemáticas. «Não se esqueçam, se a aplicação não funcionar com C, experimentem mudar para D, e confirmem sempre, é muito importante» a senhora gostava muito da sua voz. Todos os anos a porcaria da aplicação deixava de funcionar, sempre na mesmo altura, depois vinha a inevitável palestra que ele já sabia de cór. Lá fora o sol convidava a cerveja de esplanada, e ele já só via tremoços a voar. A voz cinzenta da senhora continuava a martelar os neurónios dos presentes, tudo em nome da máquina burocrática e dos seus funcionários tristes, afinal sempre era verdade, o monstro precisava mesmo de amigos.

A Obra

| segunda-feira, 27 de abril de 2009 | 0 comentários |
Ninguém sabia para que iria servir a estrutura, mas desde o início da sua montagem que dava muito que falar. A população, ao fim da tarde depois do trabalho, juntava-se em volta da construção e comentava o seu futuro uso, ou a falta dele, como eram apologistas alguns. Básicamente era uma estrutura em aço e ferro retorcido com vários patamares, muitas engrenagens e muitos rebites. Um dia, um dos trabalhadores, caiu da parte mais alta da construção e estatelou-se no chão. Muitos sacaram do telemóvel e aproveitaram para captar o momento único. Alguns comentaram com sapiência o estado do operário «aquilo são os miolos, a sairem-lhe da cabeça», como ninguém chamou uma ambulância o homem morreu ali, o que foi um escândalo. Levantou-se de imediato um troar contra a ineficácia dos serviços de socorro. Alguém apontou o dedo à construção «isto devia ser mandado abaixo, não precisamos disto para nada». Outros diziam que não, que a construção era uma obra do progresso e devia ser concluída uma vez que, como era coisa moderna, só podia trazer benefícios. O caso assim é que não podia ficar, por isso, a obra foi embargada. Hoje a obra ainda lá está, serve de abrigo para quando começa a chover, os jovens aproveitam os cantos escuros e vão para lá namorar e é lá que os velhos vendem o seu jogo ilegal. Nunca mais foi posta em causa e muito menos concluída.

O Interrogatório

| sexta-feira, 24 de abril de 2009 | 4 comentários |
Fecharam o ministro numa sala almofadada à prova de tudo. À prova de som, à prova de bala, enfim, à prova de conspirações estrangeiras. O ministro estava sentado numa cadeira de ferro ao centro. À sua volta dispunham-se cinco inspectores de soqueiras postas nas mãos, não fosse o diabo tecê-las, e como havia quem afirmasse que o dito cujo era amigo do ministro, era melhor prevenir do que remediar a súbita aparição de teares em chamas a meio do inquérito.
Um a um os inspectores interrogaram o ministro; queriam saber de onde viera a autorização para plantar mercearias num terreno reservado à produção de aviões de papel. Era escusado. O ministro não cedia, a rotação inquisitorial não o assustava, afinal de contas, tinha sido ele a inventar o método infalível de escape a perguntas incómodas. Os inspectores suavam a baldes e o ministro permanecia impávido que nem um dirigente desportivo.
A certa altura, os inspectores resolveram adoptar a táctica do quadrado e atacaram todos ao mesmo tempo. O ministro não se intimidou, antes pelo contrário, levantou-se e saiu da sala, atravessando uma das paredes como se esta não fosse mais que uma cortina de fumo. Os inspectores não queriam acreditar, nem conseguiam explicar o que se tinha passado. Mais tarde, a comunicação social referiu-se ao sucedido como: o estranho caso do ministro que parte através da parede e foge à questão essencial.

A Crónica

| quinta-feira, 23 de abril de 2009 | 2 comentários |
Estava a 24 horas do prazo de entrega, da sua crónica mensal, para a revista “O Repolho Andaluz”. Desde o príncipio da semana que se sentava religiosamente em frente ao computador, acendia um cigarro e enchia um copo com whisky. Ficava a olhar para a virtual folha em branco, dava baforadas no cigarro, bebia o whisky, mas nada lhe surgia. Bastava apenas pensar na crónica para que a sua mente começasse logo a vaguear por outras pastagens. Jogava à paciência enquanto a sua paciência se esgotava. Lia os mails engraçados, ia para as salas de chat discutir futebol, ouvia música e comprava online produtos que não precisava. Quando começava a sentir-se zonzo do whisky, desligava o computador e ia para a cama. No dia seguinte começava tudo de novo. Foi em frente ao computador que conheceu a esposa e foi em frente ao computador que se divorciou dela. Quando faltavam 24 horas para o prazo de entrega do texto, teve uma súbita inspiração e desligou a máquina. Em vez de escrever a crónica resolveu ir vivê-la.

Amnésia de Uma Noite de Verão

| quarta-feira, 22 de abril de 2009 | 2 comentários |
Acordou, mas não tinha memória de se ter deitado. Com o canto do olho reparou que o relógio de mesa de cabeceira era diferente do seu. Perscrutou o resto do quarto e concluiu que não estava em casa. «Porra!» gritou alto dentro de si, acontecera outra vez. Quando se levantou, reparou imediatamente que ainda estava vestido, o que era mau sinal, era sinal que não tinha sido uma das suas melhores noites. Na cabeça pesava-lhe o mundo, o mundo e a dúvida: onde estaria? Olhou pela janela e não conheceu a rua. A sua última lembrança era ter saído de casa bem disposto. «Desta vez é que foi a última», garantiu a si mesmo pela enésima vez. Queria ir embora mas tinha medo de sair do quarto. Não sabia o que lhe esperava do outro lado da porta. Entreabriu-a e espreitou para um corredor que todo ele indicava que a casa estava vazia, viu ao fundo a porta de saída. Respirou fundo e sentiu uma martelada no cérebro. «Vamos ter calma, é só atravessar o corredor e estou fora». Preparou-se como se fosse arrancar numa corrida de cem metros barreiras, abriu a porta de repente e, com um passo decidido atravessou o corredor até à porta de saída. Um post-it colado à altura dos olhos exortava a vermelho «Esquece que me conheceste - Esquece que aqui estiveste», ora aí estava um conselho que não iria ser difícil de seguir. Já na rua, acendeu um cigarro e olhou em redor, confuso, sem saber para que lado ficava a sua vida.

Policias e Ladrões

| terça-feira, 21 de abril de 2009 | 10 comentários |
Em pequeno, nas férias, Abrenúncio brincava muito com os seus amigos aos Polícias e Ladrões. Jogavam depois do jantar porque a noite envolvia-os todos numa capa de mistério e seriedade. Para os ladrões havia sempre a vantagem da escuridão transformar qualquer cantinho num esconderijo à prova de bala.
Abrenúncio sempre que possível, escolhia ser ladrão. Era uma vida mais excitante, com a adrenalina da fuga e tudo o mais. Nos filmes, mesmo naqueles que o polícia é o herói incontestado, Abrenúncio torcia secretamente pelo bom fim do bandido. Na escola primária chegou a ter problemas quando afirmou que quando fosse grande queria ser ladrão...Ladrão ou Bombeiro, eram os seus sonhos.
Hoje Abrenúncio é um homem crescido, os sonhos de criança ficaram para trás, esquecidos e nunca mais revisitados. É um homem respeitado pela sociedade e respeitador da moral e dos bons costumes. Desde que se tornou Gerente do Banco de Investimentos Galácticos, nunca mais pensou em roubar.

O Método

| segunda-feira, 20 de abril de 2009 | 0 comentários |
Chegara o dia da grande execução. O carrasco estava extremamente nervoso, o cliente era o chefe de uma grande rede de apreciadores de criancinhas. Esta rede havia sido desmontada vinte anos antes pela polícia dos maus costumes, numa operação concertada por um agente que, entretanto havia sido desterrado para Nebulax – a pequena.
Era grande a celeuma sobre como deveria ser executado o facínora. Não havia consenso entre as grandes mentes de Remulak – A Grande. Uns alegavam que a cadeira de electrões seria muito brutal, outros que o gás perfumado seria muito brando, para um crime tão hediondo. O povo não estava interessado no método, só lhe interessava os restos de carne que sempre eram atirados por cima da cerca, e que depois eram dados a comer aos cães de rua. Aquele que estava para morrer, saboreava descontraído o seu almoço gourmet. Como era amigo íntimo do Presidente do Conselho de Ministros, não estava preocupado, sabia que aquele telefonema havia de chegar mais tarde ou mais cedo.
Entretanto, alguém se lembrou de que, deviam ser as criancinhas a escolher o castigo.
Aquele telefonema nunca chegou, e o condenado mijou-se pelas pernas abaixo quando foi colocado frente-a-frente com a criancinha. A criancinha apontou-lhe o dedo e, solene, sentenciou:
- Quero-o cortado às fatias fininhas, como o fiambre.

As Virgens Loucas

| sexta-feira, 17 de abril de 2009 | 4 comentários |
As virgens loucas decidiram casar-se todas em Agosto, pela força do calor e porque estavam com os calores. Vestidas de branco foram a correr para a Catedral da Sé aos gritos histéricos «É hoje! É hoje!». A igreja estava a abarrotar de convidados e de curiosos: a virgem louca, tal como o Unicórnio Cor-de-Rosa Invisível, era uma visão rara. Arrumada a lenga-lenga habitual com citações bíblicas à mistura, o Padre, que não cabia em si de orgulho, lançou o repto fatal:
Alguém tem algo contra a união destes casais?
Eu! - Ribombou uma voz de trovão por toda a catedral. Era Deus em pessoa.
- Estas virgens não são loucas e nem sequer são virgens. - Era a vontade de Deus que as virgens não se casassem.
Na plateia os convidados resmungavam«eu sabia, nunca me enganaram» e outros ainda «ouvi dizer que uma delas foi para a cama com o filho do primo do padrastro do Zé Filipe». A desilusão era geral e ouve quem fosse reclamar o seu dinheiro à bilheteira.
As virgens, possuídas agora de uma genuína loucura, sairam da igreja a correr aos gritos histéricos «Era hoje! Era hoje!», tomaram o caminho de um penhasco e de lá se atiraram todas ao mar.
Deus ficou todo contente, mas o padre estava inconsolável.

A Dúvida

| quinta-feira, 16 de abril de 2009 | 2 comentários |
Romualdo, Zeferino e Anacleto encontraram-se reclusos na mesma cela. Não se lembravam de nada; nem o que tinham feito, nem porquê, nem se tinham feito alguma coisa. A cela era escura e não tinha janelas, era pequena e não havia onde se sentar por isso sentaram-se no chão. Olharam uns para os outros com desconfiança. Tinham todos a leve impressão de se conhecerem de algum lado, como se já tivessem feito parte de uma mesma estória, como se já tivessem viajado juntos por outras latitudes.
Todos os dias, um deles era retirado da cela por breves momentos só para voltar depois, cansado e angustiado, confuso e agoniado. Depois de conversarem e de trocarem notas sobre as suas experiências no exterior, chegaram à conclusão que estavam à mercê de uma entidade ditadora, auto-denominada de El Matador. Esta personagem tinha por hábito ser cruel com os seus prisioneiros. Pressentiam que a fuga era básicamente impossível uma vez que eram constantemente observados, todos os dias, todas as horas. Mesmo no momento em que discutiam este assunto, sentiam que as ideias não eram tanto suas como do próprio El Matador, que era omnisciente e omnipotente das suas vidas. Não sabiam se haviam de detestá-lo ou erguer altares em seu nome.

A Foto

| quarta-feira, 15 de abril de 2009 | 5 comentários |
Ele não disse uma palavra o caminho todo. Limitava-se a apreciar a paisagem com um olhar melancólico, daqueles que costumava ter nos dias de ressaca. Ela fazia as despesas da conversa sem se dar conta do seu mutismo. Falava do trabalho, das colegas, do sítio onde costumava almoçar... Os almoços, sorria ele, era preciso ter uma lata desmedida para descrever os almoços daquela maneira. Ele sabia bem onde ela almoçava.
Chegaram ao sítio onde ele lhe ia tirar uma fotografia. Ela continuava a palrar sempre bem disposta, dando pequenos saltinhos de vez em quando, apanhando flores do chão. Ele encostou-a a uma arvore e moldou-lhe o corpo num motivo clássico de fotografia primaveril.
Ela continuava a sorrir, com aquele ar de quem lhe está a correr bem a vida, um ar plácido e despreocupado. Tão despreocupada estava que nunca chegou a perceber que não era uma máquina fotográfica o que ele lhe apontou.


O Optimista

| terça-feira, 14 de abril de 2009 | 3 comentários |
Zeferino tinha um vizinho que trabalhava à noite na recolha do lixo. O seu sonho era comprar uma mota «daquelas do motocross». Era um rapaz novo ainda, e esforçado, não perdia nenhum biscate que se lhe apresentasse no intuito de amealhar mais algum para a motorizada. Ao fim da tarde, que era quando ele à vezes acordava, ia com Zeferino para o café beber cerveja e conversar sobre tudo. Quando tivesse a mota, ia correr o país de lés a lés «eu depois mando-lhe postais vizinho», prometia o moço do lixo.
Uma noite teve um acidente com o sistema hidráulico do camião do lixo e perdeu três dedos da mão esquerda.
Encontraram-se outra vez, tempos depois, na esplanada do café. Zeferino ia pôr a sua cara de consternado quando o moço lhe anunciou:
Vizinho! Já viu isto? Com o dinheiro que o seguro me pagou já posso comprar a mota de uma só vez. Para a semana faço-me à estrada, depois mando-lhe os postais. Depois continuou a falar, entusiasmado como sempre. Contou que também já conseguia enrolar cigarros outra vez. Zeferino pediu mais uma cerveja, o moço ainda tinha a dele meio cheia.

A Melodia

| segunda-feira, 13 de abril de 2009 | 4 comentários |
Anacleto inscreveu-se na Cósmica Academia de Música Clássica apenas para estar mais perto dela. Conheceu-a no Liceu, num concerto para alunos com poderes extra-sensoriais. Ela tocou o violino magistralmente, mas no que ele reparou mais, foi no cabelo dela, que era prateado como o do Iggy Pop. Anacleto, que tinha ido ao concerto apenas para carregar o sistema de som, ficou de olhos boquiabertos.
Todos as semanas suportava as agruras das aulas de guitarra clássica, só para a ver mais de perto, sempre com a intenção de um dia lhe falar, embora ela parecesse estar a parsecs de distância. Ela achava piada à persistência de Anacleto mesmo sabendo da sua total inaptidão para a música e incentivava-o com o olhar. Era por ela que todas as semanas, Anacleto levava com o ponteiro de madeira na ponta dos dedos cada vez que se enganava numa nota.
Ela encantava cada vez que tocava no violino, ele estarrecia cada vez que desembainhava a guitarra. Estavam assim a última vez que os vi: ela suspensa em solos celestiais, ele agrilhoado ao instrumento com os dedos em sangue, debitando escalas para cima e para baixo. Ambos esperavam... Esperavam o dia em que harmoniosamente pudessem partilhar a mesma melodia.

A Redenção

| sexta-feira, 10 de abril de 2009 | 2 comentários |
Cedo soube o homem poderoso da morte do desafortunado. «Maldição! Eu bem que o avisei». O homem punia-se por ter deixado o outro ir direito a um armadilha, na qual, também ele havia desempenhado um pequeno papel. A sua indiferença fora fatal. Sentia que ainda havia algo a fazer pelo homem desafortunado e por si próprio, a título de redenção. Chamou os seus lictores e deu ordem para que, disfarçados, subtraíssem o corpo do outro da vala comum para onde tinha sido atirado e o trasladassem para o seu jazigo particular. Assim foi feito, e o desafortunado teve honras de homem de Estado, amortalhado em linho e ungido com os melhores perfumes da época.
Dias depois, estava o poderoso homem a lavar as mãos numa fonte pública (obsessão compulsiva que tinha desde miudo) quando viu passar alguns dos supostos amigos do homem menos afortunado, gabando-se da glória do outro e dos seus feitos, das suas aventuras e do seu maravilhoso desaparecimento. A história em pouco tempo tomara uma dimensão completamente avassaladora. «Isto ainda vai dar muito que falar» dizia para si próprio o homem do poder.

O Castigo

| quinta-feira, 9 de abril de 2009 | 0 comentários |
O homem menos afortunado sofria os horrores da tortura sentado na cadeira. Os carrascos não tinham feito um bom trabalho na instalação eléctrica, e, sem saberem se seria algum cabo mal ligado ou pura inépcia deles próprios, em vez da descarga fatal, tudo o que conseguiam eram meras aplicações de 220 volts.
Um dos seus companheiros de infortúnio, sentado a seu lado, meteu conversa:
-Ouve lá pá, tiveste a oportunidade de fugir e escolheste ficar porquê? És burro?
O homem nada respondeu, apenas soltou um esgar depois de mais uma descarga eléctrica. O companheiro do lado oposto sentiu a sua dôr e interviu:
-Deixa o rapaz descansado pá, não vês que já lhe chagaram os cornos o suficiente.
O homem desafortunado apreciou o gesto de compaixão e convidou o outro para jantar em casa do seu pai nessa mesma noite.
-Achas que vamos sair daqui a tempo? O teu pai não se chateia se chegarmos atrasados?
Realmente, pensava o homem, por aquele andar nunca mais se despachavam, mas o que dizer ao pai? Apenas a verdade, eles não sabiam o que faziam.
Ao fim de algum tempo (depois de mudarem de gerador), chegou finalmente a descarga fatal, a libertadora, que enviou de imediato, os três condenados para novas pastagens. O público explodiu numa imensa ovação e os aplausos ecoaram por séculos. Nessa noite, ninguém jantou com o pai de ninguém, embora no ar pairasse um cheiro intenso a carne queimada.


O Julgamento

| quarta-feira, 8 de abril de 2009 | 3 comentários |
-Tens a certeza que não te queres safar disto? Eu tenho poderes para te mandar embora agora e não se fala mais nisso. - Era esta a conversa do homem poderoso para o menos afortunado. O outro considerava a proposta com um ar desconfiado e cofiava a barba. Tinha passado por muito, já levava consigo a sua quota parte de intolerância e agora eis que alguém se oferecia para o ajudar. Seria mesmo sincera aquela ajuda ou apenas mais uma artimanha para ganhar popularidade entre os demais?
-Vá lá pá, aceita! - O povo lá fora, selvagem, clamava por sangue – Estás a ouvi-los? Caraças, até a mim mete medo...Vai-te embora pá, vira costas e não voltes mais. Ainda és um moço novo, vai começar a vida noutro lado.
O menos afortunado fez que não com a cabeça: - Eles são estúpidos e ignorantes como um carro de mulas atravessado no meio da estrada, mas eu sei que consigo dar-lhes a volta, tu vais ver...daqui a nada já me perdoaram.
-Tu é que sabes pá.
Despediram-se, e enquanto o menos afortunado se entregava à multidão, o homem poderoso lavava as mãos, era a hora do almoço.

A Casa

| terça-feira, 7 de abril de 2009 | 4 comentários |
Só lhe apetecia deitar fogo à casa. Aquele era o edifício de toda a sua frustração de longos anos. Odiava as paredes, as escadas, o cheiro a vómito no elevador. Odiava as pessoas que viviam e trabalhavam lá, na casa, todos os dias. Qual era o seu objectivo? Para que tinha sido construída? A casa engolia os seus habitantes e ruminava-os, tornando-os mesquinhos e calculistas, falsos e bajuladores. A casa exercia um estranho poder sobre ele, algo que ele não gostava porque não se reconhecia quando estava sob o seu efeito. Fosse ele crente e diria que a casa era maligna. Chegou a uma altura em que teve que escolher: Ou acabava com ele, ou deitava fogo à casa. Regou-se com gasolina e acendeu um fósforo: o material tem sempre razão.

No Quarto

| segunda-feira, 6 de abril de 2009 | 2 comentários |
Romualdo gostava de ficar longas temporadas no seu quarto, a descomprimir, depois de mais uma viagem intergaláctica. Era bom voltar à matemática desarrumação, ao aparente caos das formas, às variáveis intensidades de luz, entre a penumbra e o meio claro. Gostava de estar à vontade consigo e com os seus objectos, alguns já o acompanhavam havia décadas e tinham combatido ao seu lado longas e cansativas batalhas. Outros serviam-lhe de consolo, e de conselho, como os livros por exemplo. Antes de se deitar, às vezes quedava-se a olhar para os livros, que estavam arrumados nas estantes ou simplesmente deitados ao calhas por todo o quarto. De vez em quando encontrava um que nem se lembrava de ter comprado e começava a lê-lo de pé junto à cama. Outras vezes, sentava-se simplesmente no chão com uma almofada e esquecia-se das horas de deitar. A música que também a havia em quantidade, arrumava-se alegremente com os livros em qualquer lado. Gostava de ouvir música como se esta fosse uma banda sonora do que quer que estivesse a fazer. Como não tinha animais de estimação, fazia-lhe sempre companhia uma garrafa de vodka; a melhor amiga do homem, depois do cão.

Que Espécie?

| domingo, 5 de abril de 2009 | 2 comentários |
Zeferino conta-nos que quando se passeou pelo jardim dos pequenos, estes abanaram o rabo de contentamento e presentearam-lhe com os seus melhores truques. Deram a pata, rebolaram-se pelo chão, fingiram-se mortos e quando já iam fingir-se de vivos, a um estalo dos seus dedos, fingiram-se mortos outra vez. O relato de Zeferino mostra-nos que, não tanto por sua causa, mas sempre que recebe vistas, esta espécie gosta de se exibir no seu mais triste e mais estranho comportamento, babando-se e fazendo caretas, saltando de um pé para o outro, mostrando muito os dentes como se não houvesse amanhã. Diz-nos mais à frente Zeferino que, no amanhã que é o hoje, esta espécie retorna a casa e metamorfoseia-se na mais obscura, manipuladora, mesquinha, matreira, mal-humorada e incompetente das espécies. Deixam de sorrir e não acham piada a nada. Zangam-se muito uns com os outros e não raramente mordem a quem os alimenta.
Na opinião de Zeferino, esta é uma espécie violenta e sem educação que merece pouco ou nada ser salva, ficando assim catalogada na nossa base de dados como: Inqualificável.

O Sniper

| sexta-feira, 3 de abril de 2009 | 2 comentários |
Na fila do Centro de Re-Colocação, encontrava-se uma personagem que nunca ninguém esparara ver no desemprego. Era um sniper do Grupo de Operações Estéticas à Distância. Este sniper em particular contava no seu currículum com mais trabalhos bem sucedidos que qualquer outro dos seus pares, e no entanto ali estava ele. «Ao que nós chegámos» meditava a pessoa que estava a seguir ao sniper. Em conversa na fila e durante um cigarro, o sniper contou-lhe que uma paixão havia destruído a sua vida, que já não conseguia concentrar-se como antigamente, que a sua pontaria continuava igual ou melhor que o costume, mas que, a sua atenção é que se dispersava com frequência. Ainda por cima tinha amolecido, com aquela história de estar apaixonado, achava tudo bonito, enternecia-se por dá cá aquela palha e depois na hora H não conseguia efectuar o tiro. «Ó chefe, você já devia saber que um homem com um trabalho como o seu não se pode apaixonar» alvitrou a pessoa ao lado dele. «É verdade...»anuiu o sniper, com uma lágrima a escorrer-lhe pela cara.

A Oeste...

| quinta-feira, 2 de abril de 2009 | 0 comentários |
Nada de novo na frente de combate. Já me tinham falado nestes momentos de acalmia que precedem uma grande batalha. O inimigo é feroz e muito mais rápido, mas nós somos invisíveis. Bem organizados éramos capazes de nos safar, mas a disposição no campo de batalha nunca foi o nosso forte. Eles atacam-nos sempre com tudo o que têm e os nossos põem-se a declamar poesia aos berros. A poesia assusta-os momentâneamente, o tempo suficiente até eles descobrirem que nos podem ignorar. Já pensámos em atacar de surpresa com o romance histórico mas tememos que eles nos chacinem com as suas bíblias. O próximo passo tem que ser dado com precaução. É toda uma espécie fricazóide que está em jogo, uma espécie rara e em vias de extinção.

Dia 1 (O Incrédulo)

| quarta-feira, 1 de abril de 2009 | 3 comentários |
Andava pelos corredores da Firma e ria desalmadamente de tudo o que lhe diziam. «Estes colaboradores são fantásticos, sempre na palhaçada». Riu-se muito quando lhe contaram que a sua casa estava a arder. Riu-se mais ainda quando lhe disseram que a sua mulher o traía com o sócio-gerente da Firma. Gostava muito do dia 1 de Abril. Era o dia em que os colaboradores se sentiam à vontade com ele para lhe fazerem pequenas partidas e lhe contarem algumas mentirinhas. Era saudável para o ambiente de trabalho, logo, ele incentivava tal comportamento.
Chegou a casa ao fim do dia e encontrou o pacato bairro num reboliço, a polícia não deixava passar ninguém. Quando o Chefe dos Bombeiros lhe informou que a sua esposa e outro senhor haviam sido levados de emergência para o hospital, caiu de joelhos no chão com as mãos na cabeça e chorou «Será possível meu Deus?..Será possível? Que um de nós se tenha esquecido do gás ligado?»