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Os Carimbos

| segunda-feira, 10 de agosto de 2009 | |

O comboio transpõe o recorte das altas montanhas e Anacleto sente finalmente o embate da realidade. A estúpida da realidade, a acelerar nos carris, a desbravar sonhos e aventuras. Arrepia-se-lhe a pele. Pressente o regresso à sua condição de burocrata acinzentado, e isso entristece-o sobremaneira. Olha para as unhas amarelas do tabaco e ri-se da ironia por estas combinarem com as amareladas paredes do arquivo, onde são guardados todos os papéis químicos do mundo, junto com os duplicados de todas as coisas aborrecidas do mundo que foram inventadas para castrar todas as pessoas alegres do mundo. Anacleto tropeça num companheiro viajante e pede-lhe desculpa, depois repete o pedido. É a transformação que começa a dar-se; tudo em duplicado. «Com licença, com licença» a primeira via pode extraviar-se é sempre bom ter um comprovativo. A voz rouca e a poeira nos sapatos são os últimos indícios dum sonho que foi curto. Agora está na hora de lavar a cara, apertar a gravata; o mundo precisa de documentos, de ofícios, de questionários de inquéritos, de dossiers e de muitos funcionários, muitos, todos armados com tinta da china, preparados para carimbar a humanidade até à última réstia de bom senso.

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