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Strangers in The Night

| sexta-feira, 31 de dezembro de 2010 | 12 comentários |
    - ...Então ele disse-me que ia passar o ano ao estrangeiro.
    - A sério?
    - Sim.
    - Ena!
    - Também gostavas de ir?
    - Muito.
    - Para onde?
    - Não sei... O estrangeiro é tão grande.

Toca O Sino

| sábado, 25 de dezembro de 2010 | 9 comentários |
O último jingle que ouviu antes de se apagar foi o de uma instituição bancária. Jingle bells, jingle bells, já há não há papéls, murmurou baixinho e deixou-se ir. Não há pior quadra que o natal quando se está sozinho. O aspecto desertificado que as ruas tomam na véspera a contrastar com a azáfama dos dias anteriores é irritante para quem não embarca na loucura consumista da época da “paz”. Mas qual paz? pensou Labregoísio; se pudessem comiam-se uns aos outros, e não era só no natal. O sorriso imbecil e estupidificado dos donos das lojas, que olham para os clientes como se fossem patos a depenar; a repetição constante do mantra das boas festas, no café, no quiosque, na repartição de finanças, era algo com que Labregoísio não conseguia compactuar; toda aquela hipocrisia, a bondadezinha lamecha, a felicidade plástica dos outros, arrrghhh...
Celebramos em Dezembro o nascimento de um Deus que matamos por alturas de Março. Fartamo-nos depressa, e é por isso que pelo meio há o futebol. Daqui a dois dias começa a guerra de novo: o mundo cão que nos domina todo o ano. À pessoa a quem arreganhámos a fronha e desejámos um santo natal, mostramos agora as garras, como quem diz: se te aproximas muito corto-te o pescoço. O natal traz ao de cima o que de melhor há em nós: gastar dinheiro que não temos e enfardar comida como se não houvesse amanhã.
Como tal, e por ser natal, Labregoísio auto-ofertou-se com uma garrafa de single malt. Não esperou pela noite para a abrir, não, que álcool desta categoria bebe-se a qualquer hora do dia. Brindou a si próprio e emborcou numa sessão que terminou, como sempre, com ele a desfalecer no sofá, em frente da televisão, sem saber muito bem se estava triste ou contente, se era dia ou noite. Jingle bells, jingle bells, invista num PPR, dizia a televisão quando Labregoísio apagou.
Acordou estremunhado com duas ideias fixas coladas ao pensamento. A primeira: ir à casa de banho mijar. A segunda: Caçar. Caçar? E era época para isso ao menos? Não sabia. O que é que se caça em Dezembro, perguntou-se a si próprio enquanto desalugava o whisky que tinha bebido durante a tarde: Renas! Ho Ho Ho, riu-se alto enquanto os vapores do malte lhe saíam pelo nariz confirmando que o álcool ainda estava activo no organismo. Foi à despensa buscar a sua ligeirinha semi-automática com mira telescópica, pôs as munições no camuflado que entretanto vestira e saiu resoluto; Hoje é um bom dia para morrer! Disse em voz alta. A sentença era dos índios americanos, que têm tanto direito a participar nas festividades como o velho finlandês. O que é preciso é seguir as setas.
Subiu à torre do sino da igreja da Sé, que ainda estava danificada desde o terramoto, acocorou-se e esperou pela meia-noite. A pouco e pouco iam chegando as famílias para a missa do galo. Nas suas melhores farpelas desfilavam pelo largo como numa passagem de modelos. Reinava um silêncio sepulcral, como se de um enterro se tratatsse e não a celebração de um nascimento.
À meia-noite em ponto o sino anunciou o novo dia: BELLS, BELLS, BELLS, BELLS. Um zumbido estonteante percorreu a cabeça de Labregoísio acentuando-lhe a embriaguez: Prontes, já nasceu o menino...E nisto desatou aos tiros, de cima para baixo, indiscriminadamente: jingle bells cabrões, jingle bells - berrou furioso. A multidão aos gritos corria descontrolada de um lado para outro em pânico. Finalmente temos animação digna de um rei - pensou Labregoísio. Os que caíam abatidos tingiam a calçada de vermelho. Era o vermelho do manto papal; o vermelho da capa dos legionários romanos; um vermelho vivo, muito parecido ao da farda do pai natal, que por sua vez assemelhava-se ao rótulo da gasosa americana. Era o vermelho do capote dos matadores. Eh lá! - exclamou Labregoísio – Que grande tourada que p'raqui vai.

A Prenda

| quinta-feira, 16 de dezembro de 2010 | 10 comentários |
Estrupício soube logo que a vida lhe ia correr mal quando em miúdo, na manhã de natal, descobriu no sapatinho uma bola de futebol em vez do lança-chamas que tinha pedido. Um rancor profundo que o acompanharia para o resto da vida nasceu ali, numa fria manhã de inverno, sentado no chão junto à árvore de natal.
São coisas que não se fazem a uma criança, um desapontamento destes. Cerrou os punhos franziu os sobrolhos e foi para o quarto, não sem antes lançar um olhar de profundo ódio aos pais que, sentiram o sangue gelar como se acabassem de ser violados por um icebergue. Poucos dias após o incidente, já o natal se esvaía em sais de frutos, quando a mãe do pequeno Estrupício encontrou o gato Nicolau congelado na arca frigorífica. Seria o primeiro de diversos animais de estimação que morreriam em condições misteriosas. Os anos passavam e o lança-chamas continuava sem se produzir. O natal em casa do pequeno Estrupício deixou de se celebrar e começou a ser visto como um tormento, algo que quanto mais depressa passasse melhor; como quando arrancamos um dente.
Os pais do pequeno Estrupício acabaram por se divorciar e foi uma batalha dura nos tribunais por causa da custódia do miúdo: ninguém queria ficar com ele. Estrupício foi enviado para a adopção.
A família que acolheu o pequeno Estrupício era do melhor e mais gentil que se podia encontrar numa família respeitadora e cristã, e talvez por isso estranharam, mais do que o desaparecimento do cão, a mutilação indiscriminada dos ícones religiosos que ostentavam por toda a casa.
Apesar de tudo educaram Estrupício o melhor que sabiam, na bondade e compaixão, dentro das suas limitações católicas. E, mesmo sem o saberem, conseguiram desvanecer a antiga obsessão de Estrupício pelo lança-chamas.
Hoje Estrupício é um jovem normal, bem educado, bem apessoado, brincalhão e gentil. Quando lhe falam no natal, assunto que ele desgosta mas que não consegue evitar, uma prenda apenas lhe vem à ideia: serra-eléctrica! O olhar gela-se-lhe por uma fracção de segundo mas depois sorri com os dentes todos, e é isso que encanta as pessoas.

#230

| quarta-feira, 8 de dezembro de 2010 | 18 comentários |
O poeta é um fingidor
finge tão completamente,
que chega a fingir que é dor
a dor que deveras sente.

Fernando Pessoa

O poeta é um bandido, um vagabundo preguiçoso. A dor é a sua arte. Gosta de embalá-la, à noite, entre copos e fumaça. Rega-a como se duma planta se tratasse; fala com ela. Recita-lhe versos de Rimbaud com música erudita. A dor tem pouca auto-estima e gosta de ser mimada.
O poeta finge que é dor a dor que deveras sente porque é assim que consegue criar: em sofrimento, no caos mais sentimental a sul de todas as emoções; na cave. O poeta agarra na dor e muda-se para a cave, para o escuro, para a humidade, para a frieza; a dor é um cobertor que o poeta usa para agasalhar o cérebro entorpecido.
O poeta é preguiçoso, já se disse, deita-se no sofá com a dor e passa-lhe a mão pelo pêlo. Os dias passam-se em ociosidade e delírio surrealista.
A questão primordial que se impõe com o decorrer do tempo é: quem veio primeiro, o poeta ou a dor?
Habitua-se a este ritmo de sofrimento barra rambóia barra fingimento e um dia, um belo dia de tempestade (a dor gosta de chuva), entre uma enxurrada e outra que se anuncia, eis que o sol se imiscui no edifício de mágoa, moléstia e estupidez que o poeta criou a partir da dor alicerçada. O sol e o seu espectro de sete cores e mais as ondas de rádio e os raios x e tudo o que sol acarreta, entra de rompante pelas masmorras de um indivíduo e ilumina as sombras que se esvanecem e levanta o pó da arca das tristezas. A dor, que não gosta nada do sol, qual vampiro barato da sétima arte pop, sai de mansinho, mirrada e enfraquecida, sem se despedir.
O poeta acorda sobressaltado como se lhe tivessem jogado uma toalha encharcada em cima. Vê a claridade e sente uma espécie de alívio. Há uma dualidade na mente do artista. Agarra-se ao bloco de notas e tenta enaltecer o sentimento. Não consegue. O motor da dor foi-se abaixo, afogou-se. O poeta sorri perante a incapacidade da criação, a dualidade, lá está, e não sabe o que fazer. Foi-se a dor, foi-se o fingimento, foram-se os recantos de obscuridade; o cabrão do astro iluminou tudo. Restam as cinzas.
O ex-poeta levanta-se e vai tomar o pequeno almoço.

A Segunda Vinda

| quinta-feira, 2 de dezembro de 2010 | 22 comentários |
Praga 2009 - El Matador



Para a Fábrica das Letras - Uma Cidade

Eis A Questão

| terça-feira, 23 de novembro de 2010 | 17 comentários |
- Ainda vais gostar de mim quando eu for gorda e careca? – súbita questão feminina.
Era Zubaida quem inquiria. Labregoísio estremeceu: seria esta uma pergunta armadilha? Daquelas artilhadas para pensarmos que o desarmamento é possível; daquelas que nos levam a pensar que a resposta é só cortar o cabo vermelho no último segundo e estamos safos.
A última vez que cortara esse cabo vermelho à confiança, todo o mau feitio de Zubaida explodira-lhe em cheio na cara. Ficou um mês a pão e água, no sofá, com os cães e um cobertor. Agora que tudo voltara à normalidade, que os tratados de paz conjugais haviam sido assinados, que nada de novo havia a oeste do quarto de dormir; eis que Zubaida larga um engenho de consideradas dimensões no hall de entrada.
- Estou à espera – Insiste Zubaida. A contagem decrescente inicia-se. Labregoísio olha para o relógio digital preso ao dispositivo da questão, que presumia ser explosiva, e também ele se liquefaz em rios de suor. Avaliando rapidamente o tamanho e peso da coisa, Labregoísio chega à conclusão que é todo o prédio, senão mesmo o bairro, que está em perigo. Não existe portanto, margem para erros de linguagem, gaguejos ou evasões floreadas.
Do painel principal da bélica interrogação, Labregoísio sabe que tem que evitar a todo o custo os fios vermelhos da gordura e os castanhos da calvície, restando apenas os azuis de neutralidade incógnita. Que fazer? A contagem decrescente, em vermelho implacável, parecia acelerar: 8,7,6,5…Labregoísio descarna os cabos azuis e dá-se conta que a única solução será executar um bypass de charme…4,3,2,1…
- Minha flor! Quando fores gorda, se isso chegar a acontecer, o que não me parece possível, haverá nesse caso mais mulher para amar. E então, como careca já eu sou, seremos o casal perfeito: duas almas gémeas em dois corpos espelhados.
…0

De Pé Ó Números da Terra

| quinta-feira, 11 de novembro de 2010 | 13 comentários |
Abrenúncio entrou na sala dos contabilistas enfurecidos sem se fazer anunciar. Planta-se no meio da repartição sem que ninguém dê pela sua presença. Os contabilistas matraqueiam, com os dedos já em sangue, as teclas das calculadoras e dos computadores; e gritam alto com as máquinas como quem fala com uma planta. As plantas no entanto crescem mais bonitas se falarmos com elas, já os números não. São obtusos e teimosos, e, quanto mais os contabilistas se enfurecem mais os números se mostram desagradáveis, recusando-se mesmo a mudarem de cor. A matemática é calculista e infalível e não é com gritaria que a levam, toda a gente sabe disso.
Os contabilistas enfurecidos são pessoas rancorosas e nem olham para Abrenúncio quando este se senta numa cadeira ao lado da fotocopiadora.
A guerra entre os contabilistas enfurecidos e os números rebeldes é antiga, já não vem de hoje. Começou quando a certa altura os números em revolta se recusaram a multiplicar. Depois fizeram greve da fome e, cada vez mais magros, deixaram também de somar. É por isso que hoje em dia só sabemos fazer contas de subtrair. Subtraímos aqui e ali e às vezes somos subtraídos também.
Na presente conjuntura, as contas de somar e de multiplicar deram lugar a uma nova operação: as contas de filosofar. Contas que se fazem, tendo como base uma aritmética filosófica que se traduz em perguntas como: e se...? e se amanhã...? ou ainda que hei-de eu fazer se...?
É com questões deste tipo que um povo filosófico-matemático-poeta constrói uma extensa ponte alicerçada de palavras. Palavras gordas e exuberantes, como esperança, que aguentem com o peso de uma debandada geral. O último a sair do país apaga a luz graceja um velhinho de bengala que se vê à rasca para aguentar a passada. Do outro lado está o deserto, a aridez. E assim é que tem que ser, pensa Abrenúncio: se tivermos que ser pobres terá que ser numa geografia desoladora. A pobreza dá-se mal entre os prédios altos e os carros de luxo e os comboios rápidos. Há uma paisagem típica para cada estado de espírito, e no nosso caso, o deserto é a que melhor se adequa.
Abrenúncio segura um envelope fechado. Um envelope branco e frio, pesado como só os envelopes brancos e frios sabem ser. Até os envelopes podem pesar uma tonelada quando se está angustiado. Os contabilistas enfurecidos ainda não deram pela sua presença e por isso Abrenúncio espera. Serão boas notícias? Serão más? Os envelopes fechados da burocracia são como o gato do senhor Schrödinger, enquanto não forem abertos, teoricamente são portadores de boas e más notícias simultaneamente. Enquanto não for aberto, o envelope não revelará a sua verdadeira e definitiva natureza. Entretanto ninguém parece preocupado; os contabilistas enfurecidos continuam com os dedos em sangue; a sala continua cinzenta e baixinha, sem música, sem poesia, sem plantas. E Abrenúncio continua sentado a um canto, à espera, embrutecido com a estranheza destas coisas.

#226

| quinta-feira, 4 de novembro de 2010 | 20 comentários |
- O que vale é que eu sou muito anacléctico!
- Ecléctico, queres tu dizer.
- Não, é anacléctico mesmo, por causa do meu nome: Anacleto.
- Humm, fico feliz por não te chamares Epile.
- Epile?
- Porque se te chamasses Epile eras muito...Esquece.
- É assim, gosto de muitas coisas e variadas, tudo diferente.
- Como a salada de fruta?
- Mais ou menos. Por exemplo, gosto de musica clássica e de heavy metal.
- Os penteados são parecidos.
- Exacto, e se às vezes adormeço a ouvir uns, acordo a ouvir os outros.
- Espero que não adormeças a ouvir heavy metal, por mor dos teus vizinhos.
- As paredes não deixam passar o som, o que é mau.
- É mau?
- Sim. Acho que tudo na vida deveria ser transparente e permeável.
- Como assim?
- Houve em tempos um homem que era totalmente transparente. Quando estava doente, não era preciso muito para chegar ao diagnóstico. Olhavam para ele, os médicos, e logo diziam: Olha! É daquilo que ele está doente. Pois claro, concordavam os especialistas, só pode. E até o próprio homem então, olhava para si próprio e comentava: Ah pois! Eu bem me parecia que aquela mancha não devia estar ali.
- Interessante.
- E mais: Os próprios pensamentos do homem eram transparentes e podiam ver-se a olho nu. Uma vez, estava ele a terminar o namoro com um certa rapariga e saiu-se com aquela clássica: Não és tu querida, sou eu! E nisto, ela olha-lhe para o cérebro e vê-lhe os pensamentos que diziam: Estou tão farto de ti, estás cada vez mais gorda. E logo ali lhe deu uma valente chapada.
- E isso é bom porquê?
- Por causa da sinceridade, homem. Então não vês? Imagina um político em campanha: vou fazer isto, vou fazer aquilo. E as pessoas olharem para ele e verem-lhe as verdadeiras intenções. No futuro, todos os políticos pensariam duas vezes antes de pensar.
- Por outro lado os pensamentos deixariam de ser privados, seríamos uma espécie de big brother transeunte.
- Seríamos sim, condicionados ao pensamento puro, logo à acção pura, como aconselhava o Buda.
- O Buda aconselhava isso?
- Sim, o Buda também era transparente, lá à maneira dele.
- E o homem, o que é que lhe aconteceu?
- Qual homem?
- O transparente.
- Ah! Enforcou-se.

Para a Fábrica de Letras - Transparência

Aqui No Deserto

| domingo, 31 de outubro de 2010 | 12 comentários |
Quando chove é sempre motivo de festa. No deserto a chuva é bem-vinda. Saio da tenda e corro todo nu pelas dunas. Um costume beduíno? Não sei. Talvez seja o êxtase por tamanha oferta de um deus que se afirma pela secura, tanto climatérica como metafísica. Aqui a chuva não é boa para a agricultura, por não haver agricultura, mas é boa para os camelos; para eles é como se fosse bar aberto.
Aproveitamos o momento para sacudir de cima a poeira do deserto; uma poeira que nos cobre há séculos, camada sobre camada, como se fôssemos uma cebola, ou uma boneca russa. À noite, aquecemos o chá e celebramos a chuva com histórias que nos contaram os nossos bisavós, e rimo-nos muito com a boca desdentada. Os slughis assustados uivam à lua; talvez porque nunca ouviram histórias da chuva contadas pelos seus bisavós. Os camelos roncam saciados.
Pela manhã o deserto já não está no mesmo sítio. Vogou com a chuva, como a via láctea, que flutua pelo universo afastando-se das galáxias irmãs sem dizer adeus. Levantamos acampamento e zarpamos com o deserto; nunca estamos sós quando fazemos novos vizinhos, o que interessa é a viagem.

Não Comer, Não Rezar, Não Amar – Dormir Apenas

| sábado, 30 de outubro de 2010 | 15 comentários |
Um tristeza enorme abateu-se sobre os ombros de Romualdo. Os poetas situam geograficamente a tristeza no coração: um aperto, dizem eles. Os místicos colocam-na na alma, como algo de que se padece. Romualdo não sentia apertos de espécie alguma, nem exaltações febris no espírito; a sua tristeza pesava-lhe, era isso. Como se estivesse debaixo da roda de um camião TIR. Um peso enorme que lhe tolhia os movimentos. Quando se deslocava era como se se arrastasse, os ombros apontavam o chão, vergados ao peso da tristeza feita chumbo. A angústia sentia-a na barriga e a paixão nos olhos.
A paixão sentia-a vermelha, como se o coração fosse rebentar de um momento para o outro; uma bomba relógio cardíaca. Negra era a cor com que percepcionava a tristeza: como o chumbo, como as pedras de calçada, que embora as houvesse de outras cores, Romualdo só as via negras. 
Quando estava apaixonado e triste, via tudo vermelho e negro, como as bandeiras anarquistas. Nessas alturas saía à rua, gritava palavras de ordem e atirava pedras aos polícias. A seguir fechava-se em casa, deitava-se debaixo da cama e dormia.
Romualdo admirava os budistas por causa do equilíbrio. Os budistas gostavam de Romualdo por causa da falta de equilíbrio. Esforçavam-se para o tentar equilibrar e riam-se muito dele quando caía desengonçado, como nos filmes antigos. Os budistas eram engraçados e queriam muito ajudá-lo, mas havia aquela coisa do tofu que se intrometia constantemente entre ele e o nirvana.
E assim estava agora Romualdo: encurralado. Uma tonelada de ombros empurravam-no para baixo. Para debaixo da cama.
Adormeceu a pensar na quantidade de pedras que ainda havia para atirar.

Uma Estátua Não É Uma Ilha

| terça-feira, 26 de outubro de 2010 | 21 comentários |
O homem-estátua da rua de Santo António nunca pára quieto. Faz adeus às pessoas, fala com as crianças e cumprimenta os turistas. O homem-estátua assemelha-se mais a um pantomineiro que está preso ao chão; como se tivesse criado raízes na calçada. Um pantomineiro também não será que estes não falam. O homem-estátua parece antes de mais estar perdido. E no entanto dá mostras de felicidade, não obstante a farpela branca e a cara mal pintada. A única semelhança entre o homem-estátua e uma estátua é que os pombos cagam-lhe em cima com igual desprezo.
Dizem para aí que o homem-estátua, antigamente, seria um severo funcionário do Estado, de maus humores, nenhuns amores; sempre sério e estático. Um homem só portanto; não por opção.
Um dia, ao ouvir falar do homem que largou tudo para se tornar artista de circo, uma luzinha branca bateu-lhe forte na parte detrás do cérebro. Uma luz que cresceu, ramificou-se pelas circunvalações da massa cinzenta e começou a piscar, qual árvore de natal, na parte de dentro da cabeça. Foi então que decidiu tornar-se artista, homem-estátua mais propriamente.
É um mau artista o homem-estátua e por isso às vezes passa fome, mas é muito bom nas relações públicas.


#222 (o primo afastado da besta)

| sábado, 23 de outubro de 2010 | 12 comentários |
Era como que uma espécie de hipnose. Não! Era qualquer coisa como sonhar acordado. Também não era bem isso. Era algo na fronteira de ambos os estados, como se lhe tivessem injectado com uma droga benigna.
Sentou-se em frente ao computador, desapaixonado, como sempre ficava quando tinha que elaborar maçudos relatórios, pejados de estatísticas estranhas, que não interessavam a ninguém para além das maçudas pessoas a quem estes relatórios interessavam. O que farias se a tua vizinha se tornasse num zombie? Era uma das perguntas colocadas aos inquiridos. A sério?
Acedeu à pasta A Minha Música e escolheu um ficheiro ao calhas, que o que ele precisava era de música de fundo para concluir uma empreitada que se previa longa e boçal.
A canção começou com um contrabaixo, melancólico, suave, muito pachorrento que soltava umas bordoadas graves, como uma voz antiga que aconselha, que protege. Foi como se lhe tivessem colocado um cobertor quente por cima dos ombros numa noite fria. Depois veio o saxofone, com as notas bafejadas pelo vento, que saltitavam pelo tom cavo do baixo como as pedras de verão saltam pela crista das ondas quando são atiradas pelos banhistas. E foi assim que depressa chegou a um estado meloso e catatónico de puro deleite, que sempre atingia quando se punha a ouvir música em vez de trabalhar. Com os olhos fixos no ecrã do computador, estático, quem o visse admirar-lhe-ia a concentração. No entanto, por muito que quisesse dar início à actividade, não conseguia; tinha a sensação de estar íntimo com a harmonia do universo: todos aqueles sons eram verdadeiros e tocavam-lhe nas extremidades dos nervos. Outra vezes, quando passava em frente da estante dos livros, se houvesse um que lhe despertasse a atenção; ou por se lembrar de ter gostado, ou por já não se lembrar muito bem do enredo, abria-o e logo atingia um transe igual ao provocado pela música ficando eternidades a ler, no meio da sala, em pé.
Esqueceu-se das horas. O director ralhou-lhe por causa do atraso dos relatórios, dos prazos e de mais não sei mais o quê. Mas a ele, o que lhe interessava era um estado de contemplação, que depois de atingido já não se podia desfazer; uma felicidade que ia para além das medições e convenções e conceitos e preconceitos das gentes ditas normais.
Encolheu os ombros e regressou pesaroso à estúpida realidade, que sempre o atingia na testa quando menos esperava, como uma bélinha.

A Velha História do Homem Que Saiu de Casa Para Comprar Tabaco e Só Voltou Doze Anos Depois

| quarta-feira, 13 de outubro de 2010 | 15 comentários |
O que fazer a um corpo quando não o reconhecemos ao espelho. Que espécie de prodígio é este? Uma possessão? Alguém acredita nisso? Pode-se viver parte da vida num invólucro ressequido, ressacado, ressentido e nem dar por isso? Quem és tu e porque estás em todo o meu redor? Pergunta o homem quando acorda num quarto de hotel, num corpo que não é o seu, ao lado duma mulher que não é sua. O meu corpo não tinha olheiras, nem este bigode nem a barba por desfazer. O meu corpo não estava cansado, nem tinha rugas, nem cabelos brancos salteados pelo crânio. A mulher abana a cabeça enquanto conta o dinheiro. Retoca o baton e sai, deixando-o sozinho a falar com o reflexo, como se representasse um monólogo para si próprio; uma encenação numa casa de espelhos onde uma só alma comprou bilhete. Alguém viu o meu corpo seco, ligeirinho, limpo e vistoso? Grita o homem para o barman, com os olhos raiados de sangue. O barman enche-lhe o copo do seu veneno preferido e abana a cabeça. Ninguém tinha visto tal corpo.
Ah! Deve ser isto a tal de solidão que toda a gente falava. Este vaguear incessante à procura de algo. Um indivíduo acorda e de repente está perdido e ninguém o reconhece; condenado a procurar algo que já não pode encontrar - o seu rasto. Pelo menos é o que dizem os físicos: não se pode viajar no tempo para trás, para o passado, por mor dos paradoxos.

A Lesão

| terça-feira, 12 de outubro de 2010 | 10 comentários |
Não era a inacção em si que o aborrecia. Com a indolência podia ele compactuar. Acordar tarde, passar o dia de boxers e pantufas; ler os livros abandonados na mesa de cabeceira, beber a cerveja que se amontoava no frederico à espera de um qualquer jogo de futebol, não era algo que lhe causasse desprazer. Era a lesão que o tirava do sério. Um passo em falso, um tropeção, um esforço mal medido e a lesão que espreitava por detrás de um qualquer manual de fisioterapia saltou para a realidade e instalou-se-lhe no corpo pouco habituado a estas modernices. A lesão provocava dor. Uma dor circular, estúpida. Uma dor que ia e vinha e lhe rondava a lesão em movimentos concêntricos como os de um tubarão. Quando pensava já estar melhor, vestia-se, agarrava nas chaves e estando prestes a sair, eis que a dor saltava por detrás da porta e atacava-o como um meliante furtivo na calada da noite. Nessas alturas sentava-se e ligava a televisão, mas a dor agudizava-se de tal forma que logo desligava o aparelho. Era uma dor que não se compadecia com a programação nacional.
A ansiedade era o pior de tudo. Estar à espera que lhe doesse era mais desagradável que quando lhe doía mesmo. A pessoa a quem a sua morte é anunciada sofre muito mais que o incauto, que ao sair de casa apanha com um piano de cauda em cima. A morte imediata acaba por ser mais musical que o longo silêncio da espera.
Sentia-se encurralado. Como um animal preso numa gaiola. Nota mental: Nunca mais ir ao jardim zoológico.
Não conseguiu ler o jornal. As notícias do mundo causaram-lhe, mais que dor, tristeza. Entreteve-se então a catalogar os discos da colecção de jazz e descobriu que os analgésicos misturados com cerveja tornavam os solos do Dizzy Gillespie, numa palavra: flutuantes. Ruminou no porquê de os comprimidos para a dor chamarem-se analgésicos e não oralgésicos, uma vez que são tomados pela boca. E nisto a dor atacou-o traiçoeira. Uma pontada só, para lhe lembrar que ainda existia, não fosse ele esquecer-se.
Foi para a varanda e acendeu um cigarro. Reparou no vizinho do andar de baixo, que se atarefava todo a prender à sacada, uma bandeira vermelha e verde com um manguito amarelo ao centro.
Este é que a sabe toda – pensou.


O Dedo

| sábado, 9 de outubro de 2010 | 6 comentários |
Em tempos de crise a inspiração escasseia. As ideias ficam presas no cérebro que padece de falta de oxigenação. O sangue deixa de circular, tal não é o aperto do cinto. A necrose instala-se. Era assim que se sentia Labregoísio diariamente. Sufocado. Como se tivesse a cabeça presa num torno mecânico. Ah! a imagem do operário oprimido pelo sistema. Um bom leit motiv para um mural. O homem preso à máquina. O homem servo da máquina. A máquina que rumina o homem.
Fez as contas por alto, que a matemática nunca foi o seu forte, e descobriu que será um homem velho quando a situação der algum sinal de melhoria. A vida, tê-la-à passado em contenção, em esforço, em desassossego, miserável e com medo. A sério? É isto que nos espera? A vida? É isto?
Indignava-se com a falta de indignação. Deixou-se cair no cadeirão e abandonou de novo a tela; trocou os pincéis pelo cigarro e pôs-se a esfumaçar. Gostava da sala cheia de fumo - recordava-lhe outras praias e nevoeiros - amores e inocências numa época em que podia considerar-se feliz sem ter vergonha de si próprio. Tempos que já não voltam. Não por a marcha do tempo ser linear na forma como a percepcionamos, mas por já não haver inocência uma vez que abrimos os olhos. E olhos foram abertos concerteza. Abertos para no-los encherem de areia e de promessas. Mentiras!
Que sentido de traição é este? Pergunta-se Labregoísio. Porque nos aconchegamos nesta tristeza?
Levantou-se e procurou os lençóis velhos com que resguardava os móveis quando viajava.
A sério? É só isto? Meia dúzia de banqueiros sem escrúpulos, uma classe política imbecil e dois meninos que nunca trabalharam na vida a digladiarem-se mimados, como quem luta pelo último brinquedo da moda – nós! É por isto que se vão estragar gerações inteiras?
Esquartejou o lençol e pintou as partes de vermelho e verde – a cor da tesão e do ciúme – desenhou-lhes em amarelo um punho fechado de dedo médio em riste e dependurou tudo da janela. Sim, porque não é só em dias de bola que devemos mostrar a nossa excitação. Era este o seu manifesto. Um dedo esticado. Um dedo que talvez se espalhe pelo bairro, pela cidade, pelo país inteiro, até que os senhores engenheiros de fim-de-semana, os senhores doutores de pacotilha e todos os outros de seriedade duvidosa, sintam um dia ao se sentarem nas suas poltronas, um forte ardor subir-lhes pelo ânus acima.


Questões de Química

| quarta-feira, 6 de outubro de 2010 | 11 comentários |
Abrenúncio gostava de ir à mercearia. O facto de as compras serem mais caras que nos outros sítios era compensado por um ambiente único que só na mercearia encontrava. Conhecia algumas na cidade, cada vez mais escassas, e tinha a certeza que em cada uma delas havia um mundo de personagens únicas retumbantes nas suas idiossincrasias. Cada mercearia é uma rede social. Todos os clientes sabem da vida uns dos outros e daqueles que não se conhece, fica-se a saber através dos amigos dos amigos. Antes de ser um espaço de comércio é um sítio de partilha: de conhecimentos da vida alheia, das notícias do bairro, das viagens organizadas pela junta de freguesia, de mezinhas várias, enfim...
Abrenúncio gostava da mercearia tanto quanto detestava supermercados grandes - perdia-se quase sempre, e nunca sabia onde estavam as coisas - ali não, na mercearia era tudo perto.
Na sua mercearia, gostava particularmente da senhora de cabelo ralo, pintado de cor-de-laranja que andava sempre de pantufas. Quando chegava a sua vez na caixa fazia questão de agarrar num produto ao calhas e afirmar em voz alta, como quem não quer a coisa, Este shampoo é muito bom! Eu sei porque a minha filha é Química e ela disse-me que este era um bom shampoo. Noutros dias era a manteiga. Noutros ainda o detergente da loiça, o amaciador da roupa, o creme para as mãos, a pasta de dentes, e tudo quanto possuísse um ph. Nunca se coibia de aconselhar outros clientes, ou não fossem estes meros vitelos no matadouro que era o marketing agressivo dos mass-media. Esse não vizinho, esse não presta, leve antes este que a minha filha que é Química diz que é muito bom. E Abrenúncio levava, para ele era tudo igual, não lhe fazia a mínima diferença; o que ele gostava era de ver a mulher com o peito cheio de orgulho por ter uma filha que, não era nem mais nem menos do que: Química.
A dona da mercearia abanava a cabeça numa concordância pachorrenta, diz que sim, diz que sim. Ela que só queria vender, não lhe interessava quem fazia a publicidade: se as televisões, se a mãe da Química. Registava as discussões entre clientes com malabarismos diplomáticos que a permitiam ficar sempre de acordo com as partes envolvidas, como convinha a uma dona de mercearia. Se as indicações da filha Química iam de encontro às do filho doutor daqueloutra cliente, a dona da mercearia encontrava facilmente um ponto de intersecção comum às duas, qual sabedoria salomónica.
Do seu filho não falava. Era tabu e todos os clientes sabiam-no. Era como se não existisse, ainda que tivesse pedido clemência por ele, ao doutor juiz, no dia da sentença. O marido, que orientava o negócio, também nunca dava parte de fraco quando começavam os concursos para ver quem tinha o filho mais bem sucedido. Nem pestanejava.
Ainda não tinha sido há muito tempo que o filho se levantara a meio da noite, e,  por qualquer razão, com uma faca de cozinha, atacou primeiro o pai e depois a mãe, desferindo golpes aleatórios que acertaram ora num ora noutro. Como estavam às escuras e não viam o agressor, gritaram por socorro e chamaram pelo filho, que só não veio porque já lá estava.
Sempre que ia às compras Abrenúncio não conseguia deixar de notar na enorme cicatriz que a mulher trazia ao pescoço desde a lúgubre noite. Com o homem passava-se o mesmo. Os cortes agora sarados notavam-se-lhe na cara e nos braços. Cortes profundos que doíam menos à superfície que no seu âmago. Marcas de Caim que ficam para sempre e que não se podem remover. A resignação só era comparável com o que tinha sido a surpresa.  Até tu meu filho! - diria Júlio César. Até tu minha filha que és Química! – diria a senhora de cabelo cor-de-laranja.

A Hard Day's Night

| sexta-feira, 1 de outubro de 2010 | 24 comentários |
It's been a hard day's night
And I've been working like a dog
The Beatles

Acordou com o cheiro da chuva. Mais concretamente com o cheiro da terra molhada. A cabeça doí-lhe como se tivesse marrado numa bigorna. Um espirro de vodka estremeceu-lhe nas narinas e o sabor do álcool voltou-lhe à boca num enjoo matinal. Estava prestes a dar à luz uma ressaca monumental. Pelo aspecto molhado da sala deduziu que tivesse chovido a noite inteira. Desde que ela se fora que ganhara o hábito de dormir de janelas abertas, todo nu, na esperança vã que uma noite ela regressasse e se deitasse com ele na vasta cama que aumentava de tamanho todos os dias. Vestiu o roupão cor-de-rosa e de caminho para a cozinha agarrou na garrafa de vodka meio cheia. Ora aí está uma imagem positiva que os gurus da auto-ajuda nunca se lembraram de usar: um indivíduo acorda ressacado depois de uma noite perdida e mesmo assim consegue ver a garrafa de vodka meio-cheia.
Quando a má-disposição começou a tomar proporções montanhosas, tomou uma decisão radical: Bloody Mary. Deitou uma porção generosa de vodka num copo alto, juntou-lhe uns restos de tabasco fora de prazo, uma pitada de sal, sumo de tomate, pimenta, e, como não tinha molho inglês juntou-lhe mais vodka, que isto dos cocktails matinais o segredo está no improviso. Bebeu o composto de um só trago e pouco depois sentiu o sorrisinho da noite anterior aflorar-lhe de novo os lábios.
Agora sim, estava pronto para o trabalho. Acendeu um cigarro e voltou para a sala que também era o quarto e fazia as vezes de hall de entrada. Ligou a aparelhagem e pôs um cd do Coltrane; aos primeiros acordes soltou um passinho de dança.
Sentou-se em frente ao computador que ficara ligado da noite anterior e enterrou os pés nus no tapete árabe, única recordação duma viagem que tinham feito juntos, noutra vida. Na secretária, por debaixo da montanha de rascunhos, ainda guardava a carta que ela lhe deixara em cima da cama num envelope agora amarelo. A frase, por ser tão singela, ficou-lhe atarrachada na memória: Deixo-te o tapete, levo o cão.
Sacudiu a cabeça e tentou concentrar-se no trabalho que já estava mais que atrasado. Tinha ficado de escrever um livro para crianças, encomendado pela editora, mas todos os dias ruminava á volta do tema e não passava do título: Pai Natal ou Menino Jesus? – Eis a Questão!
Acendeu outro cigarro. Não conseguia conter a inspiração: era-lhe permeável. A dita atravessava-lhe o corpo como o sangue dominical por um cálice partido; como a chuva que lhe entrava pela janela. Os dedos passeavam pelo teclado mas o resultado era sempre o mesmo: reminiscências duma tristeza. Uma tristeza que se prolongava ao longo do dia. Um dia que demasiado cedo se fazia noite.

Para a Fábrica das Letras -  O Cheiro da Chuva

#215

| quarta-feira, 29 de setembro de 2010 | 5 comentários |
Romualdo pasma-se. O ódio está de volta. A perseguição ganha terreno: alimenta-se da intolerância e da ignorância e mais que tudo, duma estupidez conhecida entre nós por ser ambundante e ambundantemente disfarçada.
Romualdo isola-se, não compreende os outros. Não tem medo; queda-se perplexo. Descobre-se numa pele que não é a sua, como se representasse um papel. Não quer ser vítima. Não quer ser carrasco. Olha-se ao espelho e vê os traços da vetusta humanidade esvanecerem-se como poeira ao vento.
Um dia vêm-me buscar a mim.
Eliminamo-nos por ordem crescente do ódio. Eliminamo-nos porque ajuda a passar o tempo e a frustração. Somos frustrados porque não somos felizes; entregámos a felicidade aos outros para que cuidassem dela, como um penhor. Ficou a promessa de voltar um dia para a resgatar, numa manhã de nevoeiro, qual Sebastião, mas nunca voltamos. Esquecemo-nos dela, é só.
Os outros estão no fulcro das nossas vidas, sabem de nós, decidem por nós. Comandam-nos, como titereiros. O centro gravitacional da massa humana que forma os outros assemelha-se em tudo a um buraco negro: capaz de nos sugar a luz dos olhos.
Um dia vêm-me buscar a mim. Quando não houver mais ninguém. Os que vierem não serão os monstros abomináveis que as nossas mães nos falavam, não. Serão os nossos vizinhos, sorridentes, entre um bom dia e um como tem passado; os nossos colegas com quem acabámos de almoçar; os nossos amigos sempre a quererem o nosso bem. Quem vier, trará um beijo na face em mente. Ter inimigos identificados é um luxo.
Romualdo não está só, todos os loucos o acompanham. Os loucos são unidades móveis de felicidade esquecida. Não têm medo; quedam-se sim, perplexos.

Os Cães

| segunda-feira, 27 de setembro de 2010 | 10 comentários |
Os cães deitam-se aos meus pés, depois de uma revolução de saltos e alegria, típica dos cães sempre que chego a casa. Dou-lhes de comer e o agradecimento está-lhes no olhar. Conseguem dizer tudo com aqueles olhos, os cães. Se aprendêssemos alguma coisa com os cães, poupávamos os maiores equívocos provocados pela linguagem, invenção que se diz do diabo. Responderíamos às carícias com um abanar do rabo e à má disposição com um rosnar; ladrávamos se estivéssemos zangados e tudo era mais simples. Este passo evolutivo ainda está longe de quem para tudo precisa de mil reuniões e mil formulários e mil protocolos; de quem se desfaz em carimbos e segundas vias e cópias em triplicado.
Quando falamos dum mundo cão, esquecemo-nos que é um mundo de roupa lavada, comida a horas certas e passeios diários na companhia de alguém que se gosta - como pode ser isto ruim?
Às vezes apetece-me ser como os cães: morder as canelas das pessoas que não gosto.

Diário de Abrenúncio
25/09/2010

Areia Fininha

| quinta-feira, 23 de setembro de 2010 | 15 comentários |
É como areia fininha que se escapa por entre os dedos. A vida. Escapa-se-lhe às mãos cheias por muito que cerre os punhos. Não. Reformula o pensamento: talvez escape precisamente porque cerra os punhos. E os dentes, também cerra os dentes. Tudo em si é encerrado.
Um dia o poeta acordou e viu que tinha a vida toda desarrumada. Os dias por cima das cadeiras, os meses debaixo da cama e largos anos amarfanhados de qualquer maneira num cesto de roupa suja. As pessoas chamavam-lhe poeta mas havia muitos anos que não rimava; não conseguia encontrar a musicalidade nas palavras que faziam eco umas com as outras. Ainda seria poeta? Pode ser-se poeta sem escrever uma simples quadra, um verso que seja?
Era um poeta do silêncio. E isso existe? Poetas mudos?
Tinha um amigo pintor que não pintava, o que para si era um consolo. Passavam muitas tardes juntos, sentados no sofá, a embebedarem-se. O amigo falava-lhe dos quadros que não tinha pintado, das cores vivas e quentes, cheias de paixão, que enchiam a sala de luz numa cascata multicolor. O poeta acendia cigarros e mimava aos saltos os poemas que não tinha escrito, que por serem duma forma maior de lirismo silencioso, emocionava ambos. Aos fins-de-semana juntava-se-lhes Anacleto, o músico, que era surdo e não tocava nada.
O que ele queria era agarrar a vida em todo o seu esplendor. Queria deixar de escrever lugares comuns como: a vida em todo o seu esplendor. Queria amar. Amar com as mãos e a boca e os dentes. Queria escrever sobre o amor. Queria escrever sobre o amor de pernas para o ar. Amor ao contrário lê-se Roma. Queria ir a Roma. Queria agarrá-la em Roma e em todo lado. Em todo o lado é onde fica o mundo. O mundo escapa-se-lhe como areia fininha por entre os dedos.

Metamorfose

| sexta-feira, 17 de setembro de 2010 | 8 comentários |
Labregoísio, que sempre fora um indivíduo calmo e ponderado, começou a sentir uma ponta de irritação descer-lhe pela espinha abaixo. Era a terceira vez que se cortava a fazer a barba e ainda mal tinha principiado. Não que a barba em si fosse um desafio. Essa desaparecia a golpes precisos de máquina de barbear que tinha seis lâminas electromagnéticas. O que o deixava mesmo desaustinado era a sua vizinha. Mais propriamente a gritaria desta logo pela manhã. A filha não dormia e a vizinha achava que esse martírio era algo que deveria de ser partilhado com o resto dos condóminos.
Labregoísio era senhor de um sinal de nascença na face, daqueles que são muito bonitos até que ao mínimo corte desatam numa sangria bíblica. E quando digo bíblica refiro-me ao antigo testamento. No novo também há sangue, mas é só no fim quando (spoiler alert) o Cristo morre.
Naquela manhã, estava Labregoísio a executar a tarefa minuciosa de contornar o sinal com o sexteto de lâminas afiadíssimas; manobra que exige a concentração dum cirurgião senão a frieza dum talhante, quando começa a vizinha num pranto O QUE É QUE EU FAÇO A ESTA MOÇA MEU DEUS???. A vizinha gritava numa voz fininha e irritante como se não houvesse amanhã, e quanto mais a vizinha gritava mais a criancinha chorava, e quanto mais a criancinha chorava mais a vizinha se exasperava MAS O QUE É QUE TU QUERES? JÁ NÃO TE POSSO OUVIR MOÇA DO DEMÓNIO!!!.
Ora a mão de Labregoísio que se queria firme, largava numa dessas danças desengonçadas ao ritmo da gritaria da outra, o que se traduzia em lacerações várias. O sangue escorria qual praga do Egipto e Labregoísio era um daqueles homens que não podia ver sangue. Não daqueles que ficam amarelos e depois desmaiam, não. Labregoísio transformava-se. Desceu a escadas e bateu à porta da vizinha. A vizinha, de criança a chorar ao colo, abriu a porta e deparou-se com um homem estranho de máquina de barbear em punho.
Com a cara coberta de pedaços de papel higiénico vermelho, e uns olhos que faiscavam ódio visceral, já não era Labregoísio que ali estava, era Romualdo, e este só tinha uma dúvida: carótida ou jugular?

Lições de Física

| segunda-feira, 13 de setembro de 2010 | 12 comentários |
O dia em que Abrenúncio perdeu o pivô estava cinzento e ameaçava chuva. É sempre nestes dias que tudo acontece; um céu escurecido, umas nuvens carregadas, o diabo à espreita e pronto, temos os ingredientes necessários para cozinhar uma desgraça.
Neste dia em particular o diabo escondia-se por detrás de um poste. Abrenúncio já atrasado para o emprego, a correr desvairado pela calçada, não conseguiu evitar olhar para uma bela moça loira de pernas até ao pescoço e saia pelo umbigo que se cruzou com ele. A uma determinada velocidade quando duas forças se confrontam, uma delas é forçada a ceder. Neste caso singular em que a boca de Abrenúncio se dispôs a medir forças com o poste da luz, o poste da luz levou a melhor. E como dois corpos não podem ocupar um mesmo espaço ao mesmo tempo, o pivô cedeu o seu lugar à pedra dura do poste e abandonou a boca de Abrenúncio. Como uma desgraça nunca vem só e o diabo nunca está contente, a moçoila calhou olhar para trás no exacto momento em que Abrenúncio abria a boca desdentado com o sangue a escorrer-lhe copioso pelo queixo. Depois começou a chover.
O trauma foi tal que no espaço de tempo que mediou entre o acidente e o ir ao dentista, Abrenúncio foi assaltado pelos mais assombrosos pesadelos. Uma noite sonhou com a loira sentada na sua sala de jantar rodeada dos outros dentes. Tomavam chá e comiam bolinhos. De semblante carregado exigiam de Abrenúncio a informação. Qual informação? A informação! Abrenúncio afundava-se no cadeirão e não encontrava respostas, não sabia de nada, estava completamente a leste do paraíso artificial. Encolhia os ombros e abanava a cabeça coberta por uma fina camada de suor frio. Não sabia de nada. A falta que o dente lhe fazia. Era o pivô que costumava ler as notícias lá em casa.

O Banquete

| quarta-feira, 1 de setembro de 2010 | 25 comentários |
A festa ainda estava no seu estado embrionário mas os convivas encontravam-se já sentados à mesa. Uma mesa composta de outras mesas que formavam um círculo. Ninguém queria ficar de costas para ninguém, não por uma questão de educação, mais por instinto de sobrevivência. Miravam-se nos olhos constantemente e arreganhavam os dentes. Tiravam medidas, avaliavam-se. Havia quem salivasse.
As divergências sobre a ementa, que não se podiam considerar supérfluas, eram muitas; os convidados haviam decidido, por uma qualquer vicissitude da época, comerem-se uns aos outros. Assim mesmo, sem apelo nem agravo. Ora, uma empreitada deste nível nunca é aceite de ânimo leve, assim, do pé para a mão. Impunha-se organização. Estas coisas só se decidem através de uma forte sentido de entendimento e comunhão. Entretanto, se havia quem não se importasse de ser comido havia também aqueles que se recusavam veementemente a servir de repasto a qualquer um.
Os de estirpe mais nobre, por exemplo, não lhes bastava a carne do seu vizinho mal passada a sangrar no prato, não. Queriam-na servida por criados de libré. Por outro lado, a malta da rambóia, não se ensaiava nada em comer a nobreza entre dois pedaços de pão depois de devidamente esturricada no fogareiro. Eram dois estilos diferentes que se confrontavam. Anuíam, isso sim, em que era preciso era haver carne. E sangue. Disso não restavam quaisquer dúvidas. A incerteza residia precisamente no objecto dessa carne e desse sangue, que nenhuma das partes estava disposta a produzir.
A certa altura a argumentação puramente filosófica subiu de tom para o debate religioso: Quem deve comer o homem? E como em todas as manifestações de cariz religioso, lá estavam os sacerdotes, de pé, à espera duma conclusão. Abençoavam uns e outros na certeza porém, de que fosse qual fosse o desenlace, uma terça parte lhes caberia por direito divino.
Os magarefes, na sua eterna paciência, bocejavam aborrecimento perante tamanha polémica. Afiavam os cutelos com a desenvoltura típica do ofício, e como novidade, colocavam nos ouvidos tampões de silicone para abafar o ruído; que isto os homens quando lhes toca a morrer gritam mais que os porcos.

Para a Fábrica de Letras - tema livre

A Estação

| terça-feira, 31 de agosto de 2010 | 8 comentários |
Labregoísio não encontrava a saída da estação e havia já duas horas que andava às voltas. Parecia não haver portas naquele espaço; uma gigantesca redoma hermeticamente fechada. No entanto as pessoas continuavam a entrar. Por onde? Não sabia. Quando tentava sair era empurrado por um fluxo de seres em debandada que entravam por...Algures. Era como se se materializassem num qualquer ponto de elevada estranheza quântica.
Estava outra vez no mar bravo; a bandeira vermelha, os salva-vidas a jogarem à cartas, ele a querer sair da água onde nunca deveria ter entrado e as vagas a negarem-lhe o intuito. As pessoas movem-se como a correnteza, anónimas, força bruta que nos empurra para um lado e para outro, que nos esmaga ou nos traz ao de cima, em que praia irão rebentar?
Perguntou a uma senhora pela saída e esta transformou-se num pilar de sal petrificado, mudo, olhar perdido no horizonte, como se tivesse visto algo que não devia. Deu duas voltas à estação, e depois mais duas e regressou sempre ao ponto de partida. Estou sempre a voltar ao mesmo sítio, há anos que ando em circulos. Os comboios partiam e chegavam; mais gente, a corrente cada vez mais forte, a voz fanhosa do homem nos altifalantes fazia-lhe dor de cabeça. O que ele queria era sair dali, tinha pessoas à espera, pensava. Como é que se sabe que estão pessoas à nossa espera?  A estação aumentava e contraía de tamanho, como um coração. Preciso de encontrar uma aurícula urgentemente. Ou será um ventrículo? Estava perdido. Outra vez. A última tinha sido no supermercado.

Mensagens Encriptadas do Coração para as Mãos

| sexta-feira, 20 de agosto de 2010 | 25 comentários |
Abrenúncio não se decidia quanto à posição para escrever: se sentado se de pé. Sentado não conseguia parar de bater o pé enquanto o coração lhe batia na ponta dos dedos; as letras aninhavam-se em palavras cadenciadas com o coração e por isso só escrevia: tum-tum, tum-tum, o que se lhe afigurava um tudo-nada estúpido. Gostava de escrever de pé, como o Pessoa. A verticalidade facilitava o escoamento das ideias da cabeça para as mãos. Também olhava pela janela em busca de inspiração mas do outro lado não havia nenhuma tabacaria; havia sim um prédio, e a seguir, outro prédio e do outro lado, outro prédio. Toda a rua a bem dizer era formada por prédios e as outras ruas também, devia ser por isso que chamavam às ruas todas, cidade. De pé apetecia-lhe fumar enquanto assentava no papel as desventuras de mais um dia. Quando foi buscar um cinzeiro ouviu o Chico a cantar na rádio: por trás de um homem triste há sempre uma mulher feliz. Era bem verdade, e veio-lhe outra vez à cabeça aquele beijo que lhe dera ao canto da boca. Ou teria sido na boca mesmo? Era para ter sido ao canto e calhou em cheio nos lábios ou era para ter sido na boca e resvalou para o princípio da bochecha? Já não sabia. Andava com esta dúvida havia dias e volta e meia lembrava-se disso só para se atormentar. Esta questão geográfica dos beijos tem muito que se lhe diga. Voltou com o cinzeiro mesmo a tempo de se lembrar que já não fumava há pelo menos dois anos. Olha que chatice. É que o fumo quando se enevoa pelo quarto também cria um certo ambiente. Sentou-se outra vez e jogou as mãos à cabeça. Isto hoje não sai nem a ferros. Os dedos que lhe seguravam a testa tamborilavam mensagens em código morse que diziam: tum-tum, tum-tum. Foi isso que escreveu e desta vez pareceu-lhe bem.

O Fiscal

| terça-feira, 17 de agosto de 2010 | 10 comentários |
O fiscal fuça com o fácies da doninha e a curiosidade do abutre. O fiscal gosta de revolver no lixo. No lixo dos outros. Arranca o cascarrão e joga sal na ferida. Ri-se com a desfaçatez da hiena. O fiscal vê a doença onde deixa cair o olhar. Por detrás dos óculos escuros não existem olhos mas buracos negros, poços fundos que sugam a luz e a vida e a morte... Condicionado para só ver a ignomínia é um escravo que palmilha a terra lesionada pelos seus passos, pela busca incessante da podridão. É um servo de deus. Um condenado. O fiscal almoça e janta sozinho os restos da carne putrefacta. O fiscal vive na eterna ilusão de ser temido e respeitado, mas, o que toma por medo, é simples asco e por respeito, apenas desprezo. O fiscal insinua-se na vida como um amigo, mas não pode ter amigos. A amizade não pode ser fiscalizada; vive dessa liberdade que não pode ser escrutinada e que o fiscal não conhece. O fiscal não conhece a liberdade nem gosta dela. O fiscal tem uma única satisfação: a promessa de vida eterna. A vida do fiscal não pertence a este mundo. Este mundo não o enaltece.

Pedro e o Lobo

| | 9 comentários |
Pedro era uma criança irrequieta que gostava de correr pela rua e de atirar pedras aos cães e de rebolar-se pela lama. Às vezes chegava a casa com feridas nas pernas e nos braços. Não gostava da escola nem dos professores nem dos trabalhos de casa. Se era trabalho não era para casa. Era assim que a sua cabeça funcionava, através duma lógica que parecia escapar à razão das pessoas grandes. Um dia, como não lhe dessem atenção suficiente, pôs-se a gritar lobo: desvairado, inconsequente. Os pais, que dele só esperavam que fosse um génio, não gostaram mesmo nada do sucedido e atestaram-lhe com o medicamento mágico que se dá às crianças quando estas sofrem da falta de paciência dos pais. Pedro aterrou como se esperava: amorfo e desinteressado. Estava assim, a ver televisão, quando um lobo (o tal) se acercou por detrás dele, e cheio de falinhas mansas comeu-o. Desta vez não gritou nem pediu ajuda. Não valia a pena. A genialidade não era certa. Os pais sentiram um pouco a sua falta até que nasceram as gémeas. Depois, a memória dele cristalizou-se no tempo e no espaço, presa num limbo branco, sempre com a mesma idade, a mesma hipótese de futuro, o mesmo sorriso na porta do frigorífico.

No Canal

| segunda-feira, 16 de agosto de 2010 | 6 comentários |
O barco deu em seco, apinhado de gente, a meio do canal. Uma multidão sacudida atemoriza-se. Romualdo conta-se entre estes mas não tem medo, a situação já não é original. A cidade ao longe cabe na palma duma mão, com os seus contornos amarelados e construções difusas; consegue-se tocá-la com a ponta de um dedo. Romualdo sabe que a nado facilmente chegaria ao cais, mas falta-lhe a coragem e é proibido. Falta-lhe a coragem para quebrar a lei. A lei é nova. Os corpos encharcados à soalheira roçam-se inquietos, insinuam-se, forçam-se nas narinas. O povo reclama alto e a algazarra navega em todos os canais auditivos. Somos um atentado aos sentidos. Em todos os sentidos. Somos verdadeiros, daquela verdade verdadeira que é feia e disforme e que incomoda o olhar como só a verdade o consegue fazer. A boniteza é falsa e de plástico, hermeticamente fechada, numa redoma algures, também ela de plástico. Os nossos túmulos têm a forma duma vida, moldados na pequenez e resignação. Romualdo balança-se na amurada com ganas de se atirar, mas não pode. É proibido. Proibiram-nos de nadar no canal.

O Eterno Regresso Adiado

| quarta-feira, 4 de agosto de 2010 | 13 comentários |
Temos que dar espaço às coisas de que gostamos. Tempo, para que as saudades possam germinar. O afecto constante pelo objecto amado provoca atrito nas emoções. As emoções movem-se como os pássaros; geram anticorpos, despertam o enjoo. O homem enjoado já não quer voltar ao mar: fica almareado em terra.
Matar saudades é gostar outra vez do princípio; apaixonarmo-nos uma e outra vez e sempre, como o movimento elíptico dos planetas ou a rota fiel dos cometas.
As estações sucedem-se: o outono – o inverno – a primavera. Voltar à praia no verão é um acto de amor que se repete sempre pela primeira vez. Olhar para ti, também.

Diário de Abrenúncio
04/08/2010

O Cidadão

| segunda-feira, 2 de agosto de 2010 | 23 comentários |
A grande aventura começou quando o homem se sentou. Tudo é possível quando um homem se senta, é todo um rol de possibilidades que se revela. «Somos um povo aventureiro e aguerrido...» é o locutor que o diz, o documentário começou agora: «...somos uma sociedade progressiva, reivindicadora dos direitos do ser humano, o mundo reconhece-nos o trabalho, reconhece-nos a aventura, as descobertas, o brio.» Foi quanto bastou ao homem para se sentir galvanizado. As palavras soaram-lhe como um toque a rebate, um despertar para a vida. Ele era um deles, fazia parte daquele povo valente, imortal, orgulhoso. Era a hora. Ele que sempre chorara quando o hino tocava antes dos jogos de futebol, sentia-se agora mais do que nunca, um cidadão. Era o mestre do seu cadeirão ao comando do seu comando; era o rei da sala, o treinador de sofá, o revolucionário de chinelos; campeão de pugilismo doméstico, com a unha mais comprida do mundo coçava a maior micose do universo.
«Agora é que vai ser!!!» gritou irritado contra a placidez dos móveis.

Intervalo.

Os gases nobres do plasma exortaram-no a uma outra vitória «compra, compra, compra...» em explosões de cores e compassos binários. «Hei-de comprar» vociferava o homem contra a pasmaceira da estante dos livros. «Hei-de comprar» tornara-se no novo hino. Ao mesmo tempo que abocanhava um pedaço de frango frito todo ele viajava boçal pela curvatura da cupidez. Abria muito os olhos quando mastigava, como se quisesse comer o mundo. Sorveu o balde de gasosa borbulhenta e lançou um arroto castanho que cheirava a amarelo. Convenceu-se que era um homem feliz, o mais feliz de todos. É para isso que servem as convenções sociais: para fingirmos que somos felizes.
Um pequeno aglomerado de banha, recheada de carne podre injectada de alegorias oleosas acelerou pela auto-estrada femoral até atingir o túnel de acesso à grande válvula. O trânsito a principio ficou só congestionado mas depois toda a circulação cessou por completo.
Foi uma longa viagem, a do homem. No fim, encontrou-se a si próprio: uma vez e outra e outra ainda. São duas as coisas às quais não se pode fugir: o destino e a comichão no escroto.

Para a Fábrica das Letras - Uma Longa Viagem

#203

| quarta-feira, 28 de julho de 2010 | 6 comentários |
O ar da sala era de tal forma abafado que o calor ganhava contornos e colava-se a Romualdo como uma segunda pele fervente e oleosa. «Este gabinete precisa urgentemente duma janela» queixava-se Romualdo de si para si. A velha ventoinha que rangia desengonçada com as pás tortas e o suporte oxidado, servia o seu propósito ao contrário quando espalhava o ar quente em vez de o refrigerar. Os processos empilhavam-se na secretária de Romualdo desenhando uma estranha Torre de Babel. Uma onde todos falavam a mesma língua: desespero.
Ermelinda Bagarrão: Analfabeta, desempregada;
Moradia: Casa Abarracada em regime ilegal;
Doenças e outros: Não tem o braço direito, sofre de depressão.
«Ai meu Deus que isto nunca mais vai acabar e ainda só vou na letra E». Era Romualdo quem se queixava. A miséria nunca acaba: relativiza-se. Os miseráveis acampavam na secretária de Romualdo como se estivessem num festival de verão, daqueles de três dias. Romualdo arrumava-os numa partição, entre bits e bytes, por ordem alfabética, até que a morte os reciclasse.
«Uma cerveja! Dava o meu braço por uma imperial gelada.» O suor escorria-lhe em cascata e Romualdo sonhava com esplanadas. O seu corpo era uma máquina: computava miséria e libertava vapor, mas a mente, essa já estava de férias: junto ao mar atirava pedras às ondas e rebolava-se na babuja.
Na rádio, uma horda de energúmenos armava um cagaçal eclesiástico:
-Porquê esta manifestação fervorosa em apoio do padre Bonifácio? - Indagava o repórter junto de uma acólita em avançado estado de rouquidão.
-Porque o padre Bonifácio é que...É dele que a gente gosta... O padre Bonifácio não aleija as crianças na catequese quando as acaricia...
A senhora Ermelinda tinha dois filhos. Um tinha a síndrome de Down, o outro era toxicodependente.
«Também me contentava com um mojito» sonhava Romualdo, «Com muito gelo e muita hortelã, hummm, marchava nas horas». Os dedos deslizavam ligeiros pelo teclado e a vida seguia o seu rumo. Segue sempre, mesmo quando não está ninguém a ver.

Levante

| segunda-feira, 19 de julho de 2010 | 12 comentários |
Cirandava de um lado para o outro e volta e meia parava em frente ao espelho para se certificar que era mesmo ele que ainda ali estava. Abriu a janela por causa do calor. Um bafo quente e seco varreu-o na intimidade de alto a baixo mas o que sentiu foi um arrepio; suor frio, nas têmporas. Sentou-se, não sem antes lançar uma olhadela rápida ao espelho, confirmou a sua presença e decidiu escrever um postal. É preciso deixar estas impressões no papel, ou neste caso, no mundo digital; é preciso deixar impressões digitais, pegadas na areia cibernética. Encheu os pulmões do ar andaluz que o inspirava. Era ele que inspirava o ar ou era o ar que o inspirava? É preciso deixar tudo no papel, isto não é normal. Um fio de suor escorreu-lhe pela testa:glacial e salgado como o mar do norte. «Estou doente, é um facto, mas ninguém vai acreditar...» As artérias esticavam-se no cérebro como se se espreguiçassem. Que hora estranha para as artérias acordarem! As artérias dormem até tarde no Verão, e quando se espreguiçam, o sangue corre fininho pelo cérebro e as ideias circulam com dificuldade. Tapou as orelhas para as ideias não fugirem; levantou-se e foi ao espelho: ainda lá estava. Destapou as orelhas e tapou a boca, «Assim não consigo escrever». Destapou a boca e tapou o nariz; não há solução, as ideias hão-de encontrar sempre um sítio por onde fugir. Fogem por todos os lados e não se concentram nos dedos. Os dedos precisam de ideias. Os dedos estavam frios.
Olhou pela janela: um tuareg passeava no seu dromedário descapotável. «É preciso escrever isto, depressa, antes que fuja...» O ar volátil, o delírio presente: era o levante.

O Deserto

| domingo, 11 de julho de 2010 | 6 comentários |
O sonho. As nuvens cinzentas que revolteiam e se colam ao asfalto. A paragem do autocarro. O deserto. Acorda.
Levanta-se estremunhada com o fio do sonhos a escorrer-lhe ainda pelos olhos. Não sabe ainda se é uma sensação boa ou má, o acordar. Toma o pequeno-almoço como um sacrifício moderno. Um ritual que é preciso; a transição entre o mundo onírico e a realidade absurda. Precisamos de separadores na nossa vida, como os dossiers, senão já não sabemos onde estamos.
A estrada. É sempre a mesma; os condutores à sua volta são sempre os mesmos. Cumprimenta-os, já os conhece. Não se mexem; o asfalto é que roda por debaixo deles. Sonham alguns, outros já estão mortos. No sonho está numa paragem de autocarro. No deserto. No deserto o asfalto não aborrece. O autocarro é conduzido por alguém que lhe desperta o desejo. Os passageiros são pessoas que nunca viu; cumprimenta-as, desta vez com um sorriso feliz. A viagem segue ondulada pelas dunas. O condutor pisca-lhe o olho e ela sente uma vertigem.
O dia à sua volta passa como num filme. Em câmara lenta. As vozes são distorcidas, a banda sonora é má. O ruído branco das reuniões. A máquina do café avariada. O crocitar das gralhas que lhe pousam nos ombros. O almoço moído pela máquina de revolver comida. Marcar consulta no dentista – toma nota.
A estrada. O regresso. Acena aos condutores; um adeus desta vez. Boceja. O asfalto rola e a caravana passa.
Janta. Mais um separador. Temos que separar o trabalho da vida na cama. A vida na cama é importante; às vezes não há vida na cama. O chumbo. É o peso da cabeça. Fecha os olhos. As nuvens cinzentas, cada vez mais rasas, colam-se ao asfalto. Uma paragem; um autocarro. A cabeça, mais leve, enche-se de deserto.

O Puto, O Puto

| sábado, 10 de julho de 2010 | 4 comentários |
A caminho da mercearia, Abrenúncio sentiu que alguém o perseguia. Paranóia? Talvez. No entanto estugou o passo como quem não quer a coisa para se certificar que não era nada com ele. Os passos atrás dos seus aligeiraram-se também e agora começavam a ganhar terreno. Já sentia o arfar do seu perseguidor junto de si quando tomou uma atitude: defender-se com tudo o que tinha. Deu uma meia-volta repentina, ao velho estilo ninja, com as chaves de casa numa mão, um chinelo na outra, o pé direito levantado tanto quanto podia (que era muito pouco) gritou: Kiaaaiiiiiiiiii!!!! O efeito surpresa era meio caminho para desequilibrar o adversário. E foi com surpresa que se deparou com um miúdo de dez, onze anos talvez, com um cd do Tony Carreira na mãos. Toda a criança tremia de susto e quando tentou falar apenas gaguejou:
- É..É...Para ajudar... as vítimas do terramoto no Haiti- Abrenúncio, envergonhado olhou em volta e como não havia ninguém a ver, não sentiu necessidade de ser caridoso, muito menos de comprar um cd do Tony Carreira.
- Agora só tenho dinheiro para comprar pão, pá, talvez noutro dia - Mentiu.
O miúdo foi-se embora e Abrenúncio foi comprar cerveja.
Certo dia, voltava Abrenúncio a casa, com um saco de cervejas na mão e eis que o esperava à porta de casa: o miúdo. E desta vez não tinha um ar assustado. Apresentava sim, se é que é possível numa criança tão nova, o semblante de alguém sedento de vingança. Parou a uma distancia razoável, o suficiente para poder fingir que não tinha visto o infante e pôs-se a magicar «Vou fingir que não vi o puto, vou dar uma volta, ele entretanto cansa-se e vai embora». Rodou os pés na sua manobra favorita, a meia-volta, e seguiu na direcção contrária. A criança é que não se fez rogada e arrancou atrás dele, de cd esticado na mão, a gritar «Senhor! Senhor!». Mal deu conta que o miúdo não ia desistir facilmente desatou a correr. E o miúdo atrás dele. Abrenúncio corria com todas as forças que os pulmões de fumador lhe permitiam e mesmo assim não conseguia despistar a criancinha. «Cabrão do puto corre comó caraças» soluçava Abrenúncio enquanto se metia por uma rotunda. O puto não desistia, e, quem circulava de carro não queria acreditar na imagem: um homem de chinelos a correr na rotunda e atrás dele, um jovem aos gritos «Senhor! Senhor!»
À quarta volta, já um pouco almareado, Abrenúncio fez sinal com a mão e saiu da rotunda. Abrandou numa passadeira e por fim estacionou as cervejas junto a um poste. Se lhe tivessem tapado a boca naquele momento teria morrido. O miúdo chegou depois, com ar de quem fazia aquilo todos os dias. Irritado, Abrenúncio resignou-se:
- Ganhaste!!! Quanto é que isso custa?
- Dez euros, senhor, é para ajudar as vítimas do terramoto no Haiti.
Deu uma nota de dez ao miúdo que se afastou-se todo contente com o ar de quem cumpriu uma missão.
Abrenúncio contemplou o seu novo cd e pensou em como iria ficar destoado no meio da colecção de jazz. Ainda estava cansado. Tanta correria para quê? A culpa do terramoto não era dele; do Tony Carreira talvez, mas dele não. Cabrão do puto.

A Carta

| sexta-feira, 9 de julho de 2010 | 10 comentários |
Há muito que ela adiava escrever a carta. Não podia ser, a carta tinha que ser escrita; é para isso que servem as cartas. Considerava ainda a hipótese de enviar um e-mail mas pareceu-lhe demasiado informal, frio mesmo, seco. Uma pessoa clica no rato e zás! É atacada de chofre por uma avalanche de informação que nos mina todo o campo visual, sem pré-aviso,  sem anestesia. As máquinas são assim, insensíveis, não pensam na dor que causam às pessoas. Executam ordens e mais nada, sendo a palavra chave: executar. As cartas por seu lado são muito mais compassivas. São fiéis ao ser humano, como os cães e a cerveja. Deixam-se manusear; correm mundo, recolhem pequenas impressões que mais tarde transmitem ao destinatário através do toque, do simples olhar, do selo, do carimbo. Abre-se a caixa do correio e lá está ela sentada, à nossa espera, logo aí começa a emoção. Abrimo-la com cuidado para não a rasgar, lemos as primeiras linhas, lemos mais um bocado ansiosos e «Ah! Que alegria». Às vezes ficamos em silêncio de cenho carregado - más notícias – vertemos uma lágrima, duas, e a tinta começa a escorrer. A carta chora connosco, compartilha a nossa dor, o nosso luto.
No presente caso não se sabia se eram boas ou más notícias. Ela ainda não tinha escrito a carta e ele ainda não a tinha recebido.

A Anedota

| segunda-feira, 5 de julho de 2010 | 24 comentários |
E disparou. O projéctil saiu à velocidade de um quilómetro por segundo, pelo que Bonifácio já não ouviu o estampido da arma quando a bala, rodopiando frenética, fez a sua entrada pelo osso frontal e rasgou indiscriminadamente a massa cinzenta, zigzagueando pelos lobos conforme estes apresentassem mais ou menos resistência à sua fúria devastadora. Deu por fim com o parietal, o lobo e o osso, e como quem abre uma janela para o mundo, saiu em triunfo e foi alojar-se calma e secamente na parede de tijolos.
«Uma piada? Uma anedota? Bem...» Os óculos de Bonifácio tremiam-lhe no nariz, acusavam o nervosismo perante o desespero da situação. Um passo em falso e já era. «Bom...» continuou ele «Não é bem uma anedota, é mais ou menos uma adivinha...Pode-se considerar uma anedota, há quem conte como anedota...». Gaguejava, suava em bica, queria chorar mas não conseguia; engolia em seco. Agora sabia como se sentia Dâmocles em relação à espada. «Então cá vai,...Era uma vez...Era uma vez não, que isto é uma espécie de adivinha,...Então é assim: Como é que se apanha um coelho?...Escondemo-nos atrás de uma árvore e imitamos o grito de uma cenoura...». O homem em frente de Bonifácio, que era a sua única audiência, não riu, não sorriu, não tremeu, não pestanejou sequer. Puxou a culatra da arma atrás...
Mas o que ele gostava era do jogo, da perseguição, do toca e foge, da caça a bem dizer. O trabalho em si era rápido; um segundo e já está: missão cumprida. Por isso decidiu acrescentar-lhe um toque pessoal, algo que o distinguisse dos outros, algo magnânimo: uma segunda oportunidade. E como Bonifácio não era excepção, tratou de lhe explicar:
-Ainda tens hipótese de te salvar. No entanto tens uma e só uma tentativa para o fazer. Não é nada de complicado apenas tens que me fazer rir. Se me fizeres rir, juro pela minha honra que te deixo ir com vida. Agora começa. Sugiro que contes uma piada, uma anedota.
Otto Klism, o profissional, carregou a arma minuciosamente limpa, encaixou-a no coldre que trazia por debaixo do braço e saiu. Mais um dia de trabalho. Estavam cada vez mais escassos, era a crise. De vez em quando lá aparecia uma mulher enganada que queria ver o marido morto. Era um desses trabalhos que tinha agora entre mãos. Dirigiu-se para o sítio onde deveria encontrar o alvo: uma esquina ventosa em frente de uma loja de lingerie. As informações estavam correctas; o homem já lá estava. Chamava-se Bonifácio e ia morrer.

Para a Fábrica de Letras - Disparou

O Rolo de Papel

| quarta-feira, 30 de junho de 2010 | 6 comentários |
A vozinha vuvuzelante da senhora ainda lhe ecoava na cabeça quando Abrenúncio se barricou na casa de banho. Deus salve as casas de banho: último refúgio do mundo antropófago que são as repartições públicas.
Tudo o que Abrenúncio precisava era de uma simples certidão, um atestado vá lá, uma coisa simples; um entrar na repartição, assinar o nome duas ou três vezes e sair à sua vida mundana. O que sucede é que as coisas não são assim tão simples «o que é que o senhor pensa?». Há todo um conjunto de minudências, hierarquias e protocolos que é preciso respeitar, é tudo muito «complicado». Depois de atravessarmos a barreira quase intransponível de seguranças - garbosos guardiões do templo burocrático – Há a inefável senha com um número que nunca bate certo com o do respectivo visor. Mais tarde, muito mais tarde, conseguimos então ter acesso ao sagrado recinto das deusas dos impressos em tripicado. A primeira frase que a senhora pronunciou, antes mesmo do bom dia ou de se apresentar foi «É complicado!». E como Abrenúncio fez uma cara de quem não percebeu nada, complementou logo com um «não tenho feedback». A partir daqui as coisas complicaram-se mesmo e agora ali estava Abrenúncio, entrincheirado no WC.
Sentou-se na retrete e acendeu um cigarro. Apreciou os círculos de fumo que se lhe escapavam da boca enquanto lá fora os seguranças encetavam um festival de stress que era de todo desnecessário. Que iam arrombar a porta, que iam chamar a polícia, o exército e sei lá mais o quê. Ora Abrenúncio, que só queria era sossego tentou demovê-los:
- Não façam isso – advertiu – Estou armado.
Foi pior a ementa que o cimento. A única arma que Abrenúncio possuía era uma real dor de barriga que, talvez por causa do cigarro, talvez por causa dos nervos, talvez pelos dois, chegara de súbito e em força.
As tropas especiais mais depressa chegaram e logo montaram o circo habitual de perímetros recuados e snipers em cima dos prédios e muita gente a correr de um lado para o outro.
Abrenúncio urrava de dor, as entranhas revoltas pareciam querer explodir a cada espasmo. Cá fora, os policiais, também eles nervosos, ouviam toda aquela gritaria com apreensão.
- Tem alguma exigência? - Perguntou o negociador através de um megafone, afim de evitar baixas de parte a parte.
Abrenúncio, que naquela altura poderia ter resolvido todos os seus empecilhos burocráticos, gritou com urgência: «TRAGAM MAIS PAPEL!!!»

O Exame

| terça-feira, 29 de junho de 2010 | 2 comentários |
Não era o exame em si que o enervava. Era a espera. Aquele compasso em suspenso que se traduzia em toda uma sinfonia de angústia e ansiedade. O adiar do sofrimento. A esperança de não ser chamado. O inevitável. Nunca queremos ouvir o nosso nome, mas quando chamam outro acusamos decepção, ansiedade.
Um homem de bata branca, máscara vermelha e óculos escuros entra circunspecto na sala; percorre a extensa lista com o indicador - «É agora, é agora!» - centenas de cabeças esticam-se nos pescoços com as orelhas em modo de radar:
- Euletério Bagarrão! - Invoca o homem; inexpressivo, monocórdico.
Um Ahhhh! geral solta-se nos pensamentos de cada um, por isso ninguém o ouve. Aumenta a ansiedade. Aumenta sempre que alguém é chamado. «Ainda não foi desta» pensa. Resta-lhe esperar. Um dia há-de ser a sua vez, isso é certo. O universo é matemático. Não pode ficar eternamente à espera, está convencido disso. Sai para a rua e acende um cigarro. O ritmo cardíaco dispara; sente o pulsar na carótida, a vibração sincopada nos tímpanos. Lá dentro, a multidão contrai-se e dilata como se fosse um só organismo vivo; um tumor de resignação arfante.
«Valerá a pena toda esta a espera?» pergunta-se. «O exame? Será uma coisa boa?»

O Consolo

| domingo, 20 de junho de 2010 | 13 comentários |
- Diz-me o que posso fazer para te animar?
Bonifácio estava estirado no maple, de chinelos, cuecas e robe branco, que já não era branco mas amarelo devido ao fumo do tabaco. Já não fazia a barba há cinco dias e só se mexia para levar a cerveja choca à boca, apagar os cigarros num cinzeiro que se equilibrava perigosamente no braço do cadeirão, e mais importante que tudo, mudar os canais na televisão com o comando, que se aninhava confortável no seu colo como se fosse um canito de estimação. Era um dó olhar para ele, e ela tentava de tudo para o arrancar àquela letargia.
- Mata-me com o teu amor! - Respondeu ele sarcástico como que a dispensá-la. Ela sem se fazer rogada atirou-lhe com o telemóvel à cabeça. Há muito tempo que o aparelho era o seu único consolo.

O Encanto

| sexta-feira, 18 de junho de 2010 | 8 comentários |


Esmeraldina ficava a ver as horas do relógio passar e não dormia. Não que tivesse insónias, nada disso, olhar as horas era para ela um passatempo, uma espécie de encantamento. Em casa, na rua, na repartição de finanças, no banco e principalmente na praça municipal que tinha um relógio daqueles grandes, antigos, na parede da torre majestosa. Bastavam os seus olhos cruzarem-se com qualquer um desses medidores do tempo para ela estacar, em transe, como se o mundo à sua volta suspendesse a rotação, a translação, como se alguém carregasse no pause de um qualquer comando perdido no sofá de Deus. A princípio pensou tratar-se do movimento circular dos ponteiros que a hipnotizavam, mas mais tarde, quando comprou um relógio-despertador digital deu-se conta que o feitiço era o mesmo; um segundo, dois segundos, meia-hora, um dia.
Para ela decorriam apenas segundos do início ao termo do quebranto; vista de fora no entanto, assemelhava-se a uma estátua de carne e osso, catatónica, petrificada pelas horas. Certa vez, um homem, por acaso, ou por destino, ou por simples coincidência, deparou-se com a figura estática de Esmeraldina no meio da praça, e foi das coisas mais maravilhosas que viu na vida. Sem que desse conta disso quedou-se a admirar aquela mulher, de olhar vago, algo triste, algo esperançado, algo misterioso. E pareceu-lhe que isso era tudo o que havia a fazer na vida. Quem frequenta os espaços comerciais da praça não consegue compreender(talvez por falta de imaginação, talvez por preconceito)aquela forma de amor à distância. Nem o dela pelo relógio, nem o dele por ela.

Dolce Far Niente

| sexta-feira, 11 de junho de 2010 | 16 comentários |
-O melhor da vida é não fazer nada! - Declarava para quem quisesse ouvir, Labregoísio. Sentados numa esplanada solarenga bebiam imperiais e atacavam tremoços como se o segredo do mundo estivesse algures entranhado na casca daquela leguminosa.
- Nada existe para além deste maravilhoso líquido - discorria efusivo sobre as qualidades da cerveja.- Melhor que uma é sempre outra, e melhor que outra é (fazendo sinal ao empregado) mais outra se faz favor.
Quando estavam aborrecidos dava-lhes para ali: beber cerveja e filosofar. A bebedeira era o primeiro sinal que estavam deprimidos; o segundo era andarem à porrada, que era como geralmente acabavam as diatribes filosóficas.
- O homem não foi feito para trabalhar, foi feito para criar,...E não sou seu que o digo, é Santo Agostinho.
- Agostinho da Silva – Corrigiu Romualdo.
- Não interessa, até podia ter sido o Joaquim Agostinho, o que interessa é que a frase faz sentido e eu tenciono fazer dela a minha Manta.
- Mantra!
- Agora 'tás tu errado, é mesmo manta, porque quando me levantar daqui vou-me deitar e prontos...preciso de uma manta para me tapar e tal... Enquanto não faço nada.
Calaram-se e beberricaram em silêncio. Labregoísio estava convencido que tinha deduzido o segredo da felicidade ocidental: beber cerveja, comer tremoços e não fazer nada. Romualdo era mais pragmático, sabia que o vazio contemplativo era necessário para se atingir uma certa atenção das coisas, uma claridade, o espaço que origina a criação; no entanto acreditava que a acção era a ignição de todo o motor criativo. Não podia por isso estar mais em desacordo com a visão laxista de Labregoísio.
- Olha! - Recomeçou Romualdo – Tive um amigo que era como tu. Tinha exactamente as mesmas ideias disparatadas que tu.
- Vês, eu sabia que havia mais como eu por aí.
- Um dia decidiu não fazer mais nada para o resto da vida.
- Um homem inteligente portanto, um criativo.
- Muito – Continuou Romualdo - Fomos dar com ele na cozinha da sua casa, pendurado pelo pescoço, e, sem contar com a sombra que projectava na parede quando o sol entrava de tarde pela janela, não fazia mais nada.
- Isso é muito comovente e ao mesmo tempo...deveras inspirador.
Romualdo rangeu os dentes e apertou o copo com raiva. Já não faltava muito, daí a pouco começaria a porrada.

De Costas Para a Nação

| quinta-feira, 10 de junho de 2010 | 4 comentários |
As costas doíam-lhe como se lhe espetassem facas devagarinho; ao mesmo tempo o Presidente da República, com aquele seu ar de quem comeu e não gostou, discursava sobre os sacrifícios da nação, da nacionalidade e das forças armadas. O Primeiro Ministro, com aquele seu ar de quem comeu, gostou e vai repetir, mostrava-se enfadado «Que merda pá! Não se pode sair à rua que começam logo a assobiar». É um facto. O povo não perdoa e os farenses muito menos. O povo gosta de caracóis, de futebol, de cerveja e de assobiar aos altos funcionários da nação. A Avenida Caloust Gulbenkian estava congestionada e na rotunda não se podia passar, mas isso não interessava nada porque ele não se conseguia mexer. Talvez ela tivesse razão, talvez não devesse ver televisão deitado; um músculo atrofiado como um chouriço retorcido atravessava-lhe as costas indo acabar nas 'cruzes'; não tinha posição de pé, nem sentado, nem deitado. Os soldados marchavam todos certinhos e bem ensaiados que era um gosto de se ver «Com uns soldados assim até dá gosto ir p'rá guerra» diria a dona da mercearia mais tarde num ataque repentino de patriotismo bacoco. Os para-quedistas caíam de cima para baixo e alguns há muito que tinham lugar cativo na tribuna de honra. «Se ela ao menos me fizesse umas massagens podia ser que isto passasse» Mas ela tinha ido ver o Sexo e a Cidade com as amigas e por isso tinha mais que fazer. «E eu?» resmungava ele «com estas dores: nem sexo, nem cidade». À entrada do Teatro, algumas pessoas (figurantes contratados) louvaram o primeiro ministro: «Ah! Até que enfim, portugueses de verdade» rejubilou o executivo. Mudou de canal ao mesmo tempo que a dor migrava para o meio dos costados; do Camões nem vê-lo, o que não era de todo importante porque o plantel da selecção já estava completo. Os “Alicópteres” voavam de um lado para o outro e ela nunca mais chegava; depois lembrou-se, como quem se lembra de algo que escapou à lista de compras, que havia mais de cinco anos que não estavam juntos.

Vã Glória de Nadar

| terça-feira, 8 de junho de 2010 | 10 comentários |
Abrenúncio nadava sozinho num oceano frio e encrespado com o vento a salpicar-lhe a cara de pequenas agulhas salgadas. Não pôde deixar de pensar num dos seus heróis favoritos: o Luís Vaz. Também ele, afim de salvar os seus Lusíadas, teve que nadar; só com um braço, só com um olho, nos mares revoltos do sul, com o vento a esbofetear-lhe de vagas a valente barba ruiva.
Hoje tudo seria diferente, pensa Abrenúncio. Hoje, talvez a Obra se chamasse “Os Imbecilíadas”e viesse guardada em suporte USB. O nosso Bardo traria então uma pen presa entredentes, ficando assim com os dois braços livres para nadarem pujantes. Para o olho, esse, é que continuaria a não haver remédio.
Abrenúncio sai do mar a tiritar de frio com este e outros pensamentos a vogarem-lhe pelo espírito, na certeza porém de que: - Hoje não foi um bom dia de praia.

À Deriva

| quarta-feira, 2 de junho de 2010 | 21 comentários |


Estava vazio. O seu corpo, a sua alma, a sua casa. O seu copo, estava vazio. O taberneiro prontamente voltou a enchê-lo e por momentos, pairou a ilusão de que tudo era como antes. A euforia breve de se ter posto de lado a tristeza. O engano. O copo meio-cheio. O ardor da água de fogo, enquanto arranha a garganta, é arrasador. Leva memórias, lava lágrimas, seca o indivíduo. Estava seco. Não tinha amor, nem ódio, nem indiferença, nem nada; ser indiferente é ser qualquer coisa. O copo estava meio-vazio. A realidade. Mais um trago de fel e de novo a sensação de ter sido atirado ao espaço sideral, sem ar, sem rumo, sem banda sonora. À deriva. O espaço à sua volta era todo escuridão e silêncio. Estava morto? Estava vazio.

Para a Fábrica de Letras - Estava Vazio...

O Pedinte

| quarta-feira, 26 de maio de 2010 | 13 comentários |

Certa vez, de visita a uma cidade do estrangeiro, Zeferino deparou-se com um pedinte que lhe despertou a atenção. Foi na escadaria que levava ao Castelo; prostrado de joelhos, com a testa afundada nos antebraços e as palmas das mãos em concha viradas para cima. Não falava e não se mexia um centímetro que fosse, deixava-se estar apenas, em silêncio, como se pedisse clemência, num acto de tal abnegação que intrigava quem passava: estaria a pedir esmola, ou estaria a pedir perdão? As pessoas, intrigadas, seguiam caminho; receavam que ao deixar a esmola o pudessem despertar de tão profunda meditação.
Horas depois, já na vinda para baixo, Zeferino foi encontrar o homem no mesmo sítio na mesmíssima posição, como se o tempo não tivesse passado por ele, como se duma estátua se tratasse, como se não estivesse vivo. Uma diferença apenas: na concha das mãos aninhavam-se algumas moedas, alguém já tinha feito a experiência e confirmado a tese, era mesmo um pedinte.
Hoje, ao passar por uma esplanada, onde um grupo de senhoras trincava pastéis de nata polvilhados de canela, Zeferino, numa associação de ideias transviadas lembrou-se do mendigo estrangeiro:
- Um dia destes havemos estar todos como o pedinte – pensou – Uns de joelhos, outros a pedir esmola.

O Primeiro Dia

| terça-feira, 25 de maio de 2010 | 7 comentários |
- Vai-te vestir Adão! Olha a cacimba – avisava Eva com carinho e alguma preocupação.
- Não me apetece! - Retorquiu ele com ar amuado – Apetece-me maçãs.

A Sequência

| segunda-feira, 24 de maio de 2010 | 8 comentários |
Eram plácidos os domingos que passavam juntos. Iam para a praia e ele estava quase sempre de ressaca. Ela estendia-se ao sol e acendia cigarros enquanto ele sentia os miolos a fritar. O suor secava a meio caminho de lhe escorrer pelo corpo; os homenzinhos que lhe viviam no cérebro rebelavam-se. Atirava-se invariavelmente ao mar frio: gostava do choque nos sentidos, como se apanhasse um soco forte nas ideias. Ela tirava o top e mostrava-lhe as mamas dentro de água. São iguais, dizia ele, a audiência é que é maior. Riam-se e davam mergulhos. Ela queria arrebatá-lo à letargia dos domingos em que sempre o encontrava; levava-o a ver as esculturas na areia. Ele só queria vomitar: o fígado, as entranhas, o mundo. Olha um romano, dizia ele com indiferença embora adorasse os romanos. Parece estar a cagar, dizia ela, e riam-se muito, e as esculturas riam-se com eles.
Ao fim da tarde ele começava a sentir-se melhor. Retornavam. Pronto, dizia ela, já estás em casa. Foi um Plácido Domingo, respondia ele e riam-se. Pelo menos desta vez não te vestiste de mulher, sempre foi diferente – risos.
No covil, ele, deitava-se na cama que não era feita desde uma vida anterior e sorria ao pensar nela. Depois pensava na segunda-feira e vinham de novo os vómitos à garganta. Era o defeito do domingo, assinalava o fim de algo bom e antecedia o começo de algo mau. A vida acontecia entre dois domingos.

O Aumento Exponencial da Tristeza

| quarta-feira, 19 de maio de 2010 | 9 comentários |
- E agora pá, se não ganhamos este mundial...
- A crise aumenta.
- A crise aumenta sempre que estamos tristes.
- Não podemos ficar tristes então.
- Por outro lado, às vezes dou comigo a pensar que para sermos definitivamente um país do terceiro mundo, só nos falta   mesmo ganhar um mundial de futebol.
- Não podemos ganhar o mundial então.
- Se não ganhamos ficamos tristes...
- E a crise aumenta.
- A crise aumenta sempre que estamos tristes.
- O que nós precisamos é de fazer algo em grande.
- Uma feijoada.
- Exacto.
- A maior do mundo.
- Ficávamos contentes.
- Satisfeitos.
- Ninguém dava pela crise enquanto houvesse feijoada.
- E depois?
- Depois cerveja.
- Cerveja com quê?
- Com o mundial.
- E se não ganhássemos?
- Ficávamos tristes.
- E a crise aumentava...
- Aumenta sempre que estamos tristes.
- Vamos mudar de assunto, acho que já estou triste.
- Olha, sabes quem é que morreu?
- Quem???
- O Alambáceo!
- O que jogava matraquilhos?
- Esse.
- Ah!!! Morreu de quê?
- Teve um ataque de whisky.
- Morreu de bebida prolongada então...
- Não, foi de shot.

O Desencontro

| terça-feira, 18 de maio de 2010 | 8 comentários |
“...mas sobretudo a cidade
é um som
toca uma música boa
p’ra que eu me esqueça da alma ausente
que se perdeu pelas ruas
que eu não me perca também.”

Fausto Bordalo Dias


Ela olhava para o relógio e batia o pé nervosa. Já era tarde; quase pôr-do-sol e ele nada, atrasado como sempre. Tinham acertado os relógios um pelo outro para nunca se desencontrarem, e agora ali estava ela à hora marcada, à espera, sempre à espera de continuar a sua vida com ele. Acendeu um cigarro com a beata de outro e bateu o pé. Pôs a mão na anca, tirou a mão da anca, soprou, bateu o pé.
Noutra parte da cidade, ele, fumava e bebia cerveja. Ouvia jazz e escrevinhava no bloco de notas. Contava anedotas, pagava rodadas e fumava cigarros que acendia ininterruptamente. Para ele ainda era meio-dia; tinha o tempo todo do mundo, a banda principal ainda não subira ao palco. Acendeu outro cigarro, limpou o suor da testa, escrevinhou no bloco e mandou vir mais uma rodada.
Bateram as oito horas no sino da igreja e ela ainda esperava. Apagou o último cigarro com o salto do sapato como quem esmaga uma barata. Expirou o fumo como quem despeja o lixo, sem olhar para trás. Oito horas! A hora certa de ir para casa e fazer uma vida; com ou sem ele. Foi sem ele.
Chegou ao lugar combinado pouco depois do último encore. Ela já não estava. Sentiu-se sozinho e com frio. Escrevinhou no bloco versos de contrição. Bateram as oito horas no sino da igreja. Apagou o cigarro como quem apaga uma vida. Oito horas! Era de manhã. A hora certa de ir para casa e mudar de vida; com ou sem ela. Foi sem ela.

A Tempestade

| segunda-feira, 17 de maio de 2010 | 3 comentários |
Soara a sirene em Zebulon 5. Era o aviso de que uma tempestade solar se avizinhava. Havia tempo suficiente para os habitantes da colónia acabarem os seus afazeres e se deslocarem-se para casa em segurança, sem pânicos. Anacleto – O Palhaço, arrumou os malabares, as bisnagas de água, os balões coloridos mas manteve o nariz vermelho. Era a sua imagem de marca; sem ele as pessoas não o reconheciam, e, mesmo em tempos de crise e tempestades solares, o marketing era uma mais valia no mercado circense. Apanhou o Subcolon, que era o comboio subterrâneo das colónias que tinha nome de clister. Toda a gente o reconheceu: «Olha! É o palhaço Anacleto» gritaram uns «Ah! Ganda palhaço» sustentaram outros, e mesmo ali exigiram que fizesse um sketch – só para passar o tempo e animar a malta. Como não tinha nada preparado improvisou a velha pantomima do funcionário público, que enfia uma sonda rectal p'lo cu do utente acima, só para lhe avaliar o produto interno bruto. Foi um sucesso como sempre. Toda a gente aplaudiu: «Palhaço Anacleto, és o maior!» gritavam e davam-lhe palmadas fortes nas costas.
Chegou a casa dorido e cansado. O corpo já acusava a idade e a idade já acusava o excesso de palhaçada. Sentou-se no sofá em frente da televisão (há coisas que nunca mudam) sem desfazer as pinturas nem despir o fato de losangos amarelos e vermelhos. Abriu uma garrafa de whisky e deu um longo gole que lhe queimou suave a garganta. Na televisão, todos os canais mostravam as imagens da tempestade solar, que embora destrutiva, não deixava de ser um espectáculo exuberante. Tirou por fim o nariz vermelho quando o biológico já estava da mesma cor. Consultou o correio electrónico: não tinha mensagens novas.