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O Regresso Condicionado

| segunda-feira, 15 de março de 2010 | 9 comentários |
Quando nos vêm buscar de volta à nave-mãe, fazem-nos duas perguntas: O que aprendeste? O que ensinaste? É um teste, destinado a avaliar a nossa condição, depois de anos de exposição à barbarie. No caso do ensino a resposta é fácil uma vez que é nosso apanágio o ensino e prática do amor e a disseminação da paz; algo que aprendemos desde pequenos e que faz parte da nossa essência. A primeira pergunta é capciosa. Eles sabem bem que ao nos imiscuirmos nesta “sociedade” somos bombardeados com toda a espécie de perfídia e crueldade, da guerra ao canibalismo; a aprendizagem, quando há, é dolorosa e sem sentido; por isso eles perguntam pelo que aprendeste; querem avaliar o teu estado, se mais réptil ou se mais humano. O que aprendeste deverá ser um reflexo do que ensinaste, mas regra geral não o é. A casmurrice é a primeira emoção que aprendemos, o que é de todo adverso aos nossos cânones, por isso, não raramente, ao não conseguirmos responder satisfatoriamente à primeira pergunta somos condenados a palmilhar esta Terra por tempo indefinido, até que a nossa primeira resposta seja uma mais condigna e humana, o que vai sendo difícil, quando cada vez mais nos ensinam a rastejar.

Dia 4

| quinta-feira, 4 de março de 2010 | 24 comentários |
Romualdo: Faz hoje um ano que o Matador se lembrou de criar o seu inferno pessoal. Pouco tempo depois cheguei aqui, como um condenado às galés, ao degredo dos seus delírios pessoais.
Zeferino: Eh! Eu até nem tenho muito que me queixar, só acho é que devíamos beneficiar de uma qualquer espécie de compensação,...Em numerário talvez.
Romualdo: E o que é que fazias tu com dinheiro aqui?
Zeferino: !!!
Ildefonso: Eu cá só me queixo de não haver mais gajas!
Anacleto: Será que vai haver bolo de anos?
Abrenúncio: E pensar que isto começou porque sua excelência deixou de fumar.
Labregoísio: Ainda me lembro bem, quando acordei aqui o ano passado fiquei em pânico, parecia que estava naquele filme, o Só.
Abrenúncio: Saw!
Labregoísio: Foi o que eu disse.
Zeferino: A princípio nem ele acreditava que isto fosse passar da primeira semana e agora olha, cá estamos um ano depois.
Romualdo: Como é que sabes disso?
Zeferino: Ora, faço parte dele, como tu, como todos nós. Somos todos expressões dos seus delírios pessoais como tu mesmo lhe chamaste. Agora mesmo, é ele que está a ditar as nossas falas.
Romualdo: Aposto que se está a divertir, o cabrão.
Anacleto: Ele podia era comer qualquer coisa a ver se me passava esta fome.
Abrenúncio: Uma vez consegui escapar-me mas não cheguei mais longe que ao sub-consciente e posso-vos garantir uma coisa, aquilo lá embaixo é bem pior que aqui, parece uma lixeira.
Romualdo: Pergunto-me seriamente quanto tempo mais irá esta situação durar.
Abrenúncio: Para quê essa ansiedade? Quando isto acabar tu também te acabas e depois só resta o nada, o vazio, o esquecimento. Não há nada a fazer, o melhor ainda é aproveitarmos ao máximo enquanto cá estamos, e pelo caminho tentar aprender qualquer coisa, e quando menos esperas...o tempo passa.
Ildefonso: E pode ser que ainda apareçam gajas...

O Silêncio dos Omnipotentes (2ª parte)

| segunda-feira, 1 de março de 2010 | 22 comentários |
“...Odeio tudo quanto seja sagrado, tudo o que cheire a incenso e a louvores cantados. Odeio o intocável e o sacrossanto; a falsa beatitude e a inefável hipocrisia.
Espetam-nos com esta moral desde pequeninos, a moral deles, e crescemos com esta sensação de sermos culpados de alguma coisa, como se tivéssemos contraído uma dívida a qual nunca iremos conseguir pagar e por isso estamos sempre em falta perante o seu julgamento, nesta vida e mais além...”
Um conto e quinhentos foi quanto lhe custara, ao sétimo dia, encomendar a alma da sua companheira que se tinha ido com o mal maior. A moeda é antiga, a história já não é nova.
Romualdo ruminava nestas considerações quando lhe pareceu ouvir um nome familiar, vindo de muito lá ao fundo. Quando saiu do estupor em que se encontrava já não conseguiu agarrar com os ouvidos o nome dela. Tinha passado o momento. O nome dela passara camuflado entre a graça de tantos outros infelizes de tal forma que surgiu e desapareceu como num suspiro; menos que isso, um piscar de olhos.
“É isto? Já está?” - Indignou-se. Se ali estava, se fizera aquele esforço, foi porque vozes vindas de todo o lado lhe ceceavam que era assim que tinha de ser, que era assim que era decente, que era o que ela teria querido...“Mas que porra esta!” de repente toda a gente era perita em descodificar a vontade dos defuntos.
Sentiu-se ultrajado até ao âmago; era como se lhe tivessem cuspido em cima da sua humildade, da sua decência pobre. Levantou-se e num gesto raivoso afastou a cestinha das esmolas que lhe forçavam junto ao nariz: “Ele que venda o ouro que tem ao pescoço” resmungou Romualdo e saiu espaventado.
No altar, impávido e sereno, o Deus menino, tornado criança, tornado homem, tornado mártir, tornado Deus, pontificava a toda aquela tragédia com o ar triste de sempre. O seu silêncio era ensurdecedor, a sua ausência milenar. Assistia mudo e quedo à desorientação dos seus filhos; à sua auto-destruição; ao seu egoísmo pérfido; aos eternos trinta dinheiros trocados todos os dias em Seu Nome. À sua volta, os querubins tentavam cantar-lhe loas, mas não cantavam nada porque eram de pedra.
Um dia voltará! - dizem eles – para apascentar de novo o seu rebanho.
Ainda não foi ontem, e hoje tudo indica não ser a véspera desse dia.

Para a Fábrica de Letras -Silêncio

O Silêncio dos Omnipotentes (1ª parte)

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Os Abutres

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O que abutres gostam é de carne. Carne queimada, carne moída, carne quebrada, nervo torto.
Perante a constatação da desgraça, a antevisão de lágrimas, dor e miséria, avançam salivando com as suas objectivas e pivots em garra. Escarafuncham nas feridas até o pus saltar amarelo e escorrer pelos abcessos infectos. Partilham com os vampiros o horário nobre e o gosto pelo sangue quente. Digladiam-se pelo direito ao pranto estridente de uma velhinha despojada de tudo, e partilham entre si o alarmismo e a histeria pandémica.
Estes abutres, nada têm a ver com as aves falconiformes necrófagas que limpam as carcaças dos outros animais porque é essa a sua natureza, não. Estes abutres, quando descascam um cadáver ou o que dele sobra, quando debicam o globo ocular de uma criança ensanguentada na rua, fazem-no em nome de uma outra espécie, dizem eles. Fazem-no unicamente para alimentar uma outra casta necrófila, que mantém com eles um perfeito mutualismo: o ignobilis sedentarius, vulgo sanguessuga de sofá, também ele sequioso de uma boa catástrofe alheia, mal passada de preferência.
- Gostas mais do pai ou da mãe? – Perguntaram à criança.
- Gosto de CARNE! – Respondeu.