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A Mão Esquerda

| quarta-feira, 28 de abril de 2010 | 13 comentários |
Uma mão lava a outra; sempre ouvira dizer, e, foi precisamente quando ia lavar as mãos que Labregoísio reparou que lhe faltava a esquerda. «Oh Diabo!» exclamou «isto não augura nada de bom». Desaparecera-lhe a mão esquerda, assim sem mais nem menos, do pé para a mão. Era uma constante na vida de Labregoísio as coisas desaparecerem-lhe; um efeito secundário da sua distracção crónica, do seu estado de permanente esquecimento. «Ai homem, só não perdes a cabeça porque está agarrada ao corpo!» admoestara-lhe tantas vezes a mulher, e desta vez a coisa acontecera mesmo; não com a cabeça claro está, mas com a mão esquerda, que também tem a sua importância no dia-a-dia dum indivíduo. Já havia perdido ou esquecido muitas coisas na sua vida: o chapéu de chuva, as chaves do carro, o carro, os óculos de sol, os óculos de ver, as lentes de contacto e uma vez esquecera-se da mulher na praia, e só se lembrou dela no outro dia de manhã. Mas aquilo era demais; um pedaço inteiro do corpo? Nunca lhe tinha acontecido.
Lembrou-se que nessa tarde tinha ido ao dentista e de lá voltara directamente para casa. Telefonou.
 -Boa tarde, o meu nome é Labregoísio, eu estive aí em consulta há pouco e queria saber se por acaso não teria  deixado aí esquecida a minha mão esquerda?
 -A sua mão esquerda?...Como é que ela é?
 -É uma mão normal, acho eu, cinco dedos...
 -Algum sinal distintivo?
 -A unha do dedo mindinho é maior que as outras...
 -Pois claro...Um momento que eu vou ver.
Labregoísio aguardou em suspenso. Olha que chatice. É que a mão esquerda, por muito que fosse mal vista, dava um jeito do caraças em certas ocasiões. A mão direita por exemplo, quando se apanhava sozinha, assumia de imediato comportamentos autocráticos e punha-se com a mania que mandava no corpo todo...Era por isso que ele precisava desesperadamente da esquerda, para contrabalançar.
 -Não, aqui não está, encontrámos foi uma luva preta...
 -Oh! Deixe estar, a minha mão não tinha luva. Obrigado e desculpe a maçada.
E agora? Como é que ele podia voltar para casa sem a mão esquerda? A mulher de certeza que ia por-se logo a ralhar. Parece que já a estava a ouvir «andaste, andaste e perdeste mesmo a mão esquerda, Ah! Eu bem que te avisei...»
Entrou em casa e a mulher já o esperava para jantar, mal o viu não durou mais de dois segundos a perceber que algo estava errado, mas não disse nada. Foi só quando estavam sentados à mesa, enquanto Labregoísio tentava disfarçar contando anedotas do trabalho, que ela com o seu ar polar, lançou o tema como quem lança um infiel à fogueira:
- Onde é que está a tua aliança?

120 Km/h

| domingo, 25 de abril de 2010 | 11 comentários |
Abrenúncio estava aborrecido. Então, decidiu atacar a vaga de tédio com algo que lhe garantia sempre uma boa distracção: correr atrás dos automóveis na auto-estrada. Desta vez porém, resolveu inovar um pouco e foi todo nu. Não havia maior sensação de liberdade para Abrenúncio do que aquela de correr livremente pela estrada a fora, de braços abertos, com as partes pudibundas ao vento. Era outra vez o homem no seu estado puro a perseguir a artificialidade brutal da máquina. Gostava da auto-estrada porque não tinha semáforos e era uma via de trânsito rápido, onde podia portanto, atingir as maiores velocidades. Os automobilistas, ao passar por ele, buzinavam muito e faziam-lhe gestos com o dedo médio em sinal de incentivo, o que lhe dava um maior alento quando se sentia cansado. Quando corria, não pensava na vida, nem no aborrecimento nem em nada; ouvia apenas as batidas cardíacas e a respiração cadenciada, como num acalento. Aos poucos, ia deixando de ser o animal racional para se tornar de novo no animal selvagem; numa selva asfaltada; com acessos condicionados e separação física de faixas de rodagem.

O Descanso

| quinta-feira, 22 de abril de 2010 | 9 comentários |


O homem-aranha precisava urgentemente de dormir. É um dado adquirido, um super-herói precisa do seu descanso. Os camionistas são obrigados a descansar de tantos em tantos quilómetros; aos heróis exige-se exactamente contrário – o que é perigoso. Dependurado na sua teia, olhava absorto a rua 14 e os seus vendedores de electrodomésticos. Entre o trabalho de dia e a vigilância nocturna, pouco tempo sobejava para um repouso digno desse nome. O pior era a ingratidão dos nova-iorquinos que à mínima falha, ao mínimo deslize, exigiam o seu escalpe. Como fazer uma vida assim? Os biscates para o jornal nem sempre compensavam e o pagamento muitas vezes era tardio. Como herói protector inquestionável da grande maçã, actividade que lhe ocupava a maior parte do tempo, nem sequer tinha ordenado. O super-homem, que só dava barraca, era considerado um herói a sério, e ele que se matava com trabalho, tinha que contar os cêntimos para beber um café. «Deve haver qualquer coisa num homem de capa ao pescoço e cuecas por cima das calças que seduz as pessoas» resmungava o aranhiço «Ou então é por ser extra-terrestre, as pessoas babam-se sempre com os ETs».
Pensava nisto o homem-aranha e a cabeça pendia-lhe involuntariamente para frente; os olhos ardiam de tanto esforço para se manterem abertos e o seu sentido aranha, aquele que o alertava de todos os perigos, enviava-lhe sinais dúbios e enganadores. E para completar: um pombo caga-lhe em cima e esvoaça feito parvo, como só os pombos sabem; jurou ter visto um um sorriso trocista na cara do estúpido animal. «Isto já é demais!» indignou-se. Num repente, lança-se em queda livre e desata a mandar teias a torto e a direito contra os prédios, saltando de umas para as outras num bailado acrobático que impressiona sempre quem o vê. Atravessa ligeiro a Times Square e os seus leds multicolores, recupera o fôlego junto ao Central Park e continua para norte em direcção ao Bronx – ia dormir finalmente – o seu destino: o apartamento 13A - a sua casa, a sua pátria, o seu último refúgio.

It

| terça-feira, 20 de abril de 2010 | 9 comentários |
«Esse corpo que te carrega a alma, vai contigo para todo o lado!», dissera ela ao despedir-se dele no aeroporto. Era verdade, ela tinha razão, como sempre. Foi pelo corpo que se separaram e foi pelo corpo que nunca mais estiveram juntos, fisicamente, como um homem está com uma mulher. Ele sofria do síndrome de Quasimodo: que é quando as pessoas não conseguem olhar directamente para alguém que está mesmo à sua frente.
A sua presença incomodava, como se estivesse um réptil dentro da sala. Metia medo a alguns, nauseava outros e era raro quem não desviasse o olhar. Era fácil encontrá-lo numa multidão pois era aquele que tinha sempre uma clareira à sua volta. Por isso viajar não resolvia nada, como ela tão bem asseverara. Viajar era chegar a um sítio completamente diferente e constatar que a cara de nojo das pessoas era a mesma. Ela tinha razão.
Também a ela lhe custava fixar o olhar naquela massa disforme durante muito tempo. Antes de ele ser atacado pelo mal, costumavam ser amantes e andavam sempre juntos. Ela sentia-se orgulhosa de si mesma por o ter conseguido para si e gostava de usá-lo para fazer inveja às outras mulheres. Mas depois surgiu aquele inconveniente e, já se sabe, ninguém gosta de ter uma coisa daquelas parada à porta de casa, quanto mais viver com uma. No entanto, era a única pessoa que o visitava, nunca faltava a um encontro. Estava apaixonada pela sua alma.
«Um dia ainda havemos de estar juntos outra vez», pensava ele insistentemente, enquanto ela ia à casa-de-banho vomitar.

A Promoção

| sábado, 17 de abril de 2010 | 15 comentários |
"I'm all lost in the supermarket
I can no longer shop happily
I came in here for that special offer
A guaranteed personality"
The Clash

Ildefonso estava perdido. Procurava desesperadamente encontrar uma saída mas não havia maneira. As luzes brancas e brilhantes ofuscavam-no, deixavam-no confuso, baralhado. Era muita informação, muito assédio, não estava habituado. Era uma pessoa simples Ildefonso; gostava da rotina e das pequenas coisas, e, quando entrou no supermercado era isso que procurava, uma coisa simples: cerveja.
O seu plano era conciso: entrar no estabelecimento, comprar um pack de cerveja irlandesa que estava em promoção (ofereciam o copo de half pint), pagar e sair o mais rapidamente possível. Como depois se viu as coisas não foram assim tão simples. Era todo um mundo alternativo que surgia por detrás das portas de vidro automáticas; havia fruta biológica e fruta da outra, sumo natural e sumo não natural, pão de todas as cores e feitios, marisco com fartura e farturas com recheio, havia sabonetes, torradeiras, presunto, raquetes de ténis, iogurtes, tremoços e comida para cão. E leite! Leite de vaca e leite de soja: Como é que se ordenha a soja?
E havia música de fundo que saía dos altifalantes, era a Lena d'Água que exortava a clientela: ...Deus é o dinheiro, só é salvo quem o adorar... E toda uma população consumista seguia o adágio como se de uma profecia se tratasse. Nos seus fatos de treino e sandálias, coçando a nuca com a unha grande do dedo mindinho, tiravam os produtos das prateleiras obedecendo a um mantra zombie de um deus desconhecido. Há quanto tempo estaria ali? Perguntava-se Ildefonso junto à tenda de campismo com oferta do tapete de fitness. Arrastava o carrinho já cheio, pelo cabo, como se dum animal de estimação com rodas se tratasse; da cerveja nem sombras. A última vez que foi visto estava junto à secção de literatura, folheava um exemplar da explicação do resumo do Código Da Vinci.
Nunca mais foi encontrado.Desapareceu. Há quem diga que saiu sem pagar, mas todos sabemos que isso é impossível. Outros afirmam que ele próprio foi consumido numa época de descontos. Os responsáveis do supermercado insistem que em dias de chuva ainda o conseguimos ver a vaguear pelos corredores, em busca de cerveja; para tal basta adquirirmos uns óculos especiais 3D, que por acaso estão em promoção: na compra de dois leva três.

Idos de Março

| quinta-feira, 15 de abril de 2010 | 10 comentários |
Ao cabo de longas horas, César parou de trabalhar. Anoitecia. Aproximou-se da janela e contemplou toda a Cidade, a mais bela e divina de todos os tempos.
CORO: César aproxima-se da janela!
Lá em baixo os conspiradores reuniam-se algures, planeavam e maquinavam contra si, César sabia-o bem, há muito que a sua ousadia havia criado anti-corpos entre o Senado e a guerra civil só tinha piorado a situação. Sim, havia traição pelo ar, tão densa que quase se podia cortar à faca. Riu-se da fraca escolha de palavras.
CORO: César ri-se das palavras!
Quem seriam eles, questionava-se, e quando viriam? Havia ainda tanto para fazer; temia que não lhe restasse tempo suficiente para acabar a obra.
CORO: César receia não ter tempo!
A pior facada, cogitava César, não é aquela que nos dão pelas costas; essa é incógnita e cobarde e só humilha o agressor. Não, a pior facada é a que vem pela frente.
CORO: César cogita sobre as fac...
CÉSAR: CALEM-SE IMBECIS!!! Já não vos posso ouvir mais. Que melguice, sempre a narrar tudo o que faço, por Júpiter, mas de quem foi a ideia de vos plantar aqui a cagar sentenças? Desapareçam imediatamente! Ouviram? RUA!
CORO: César despede o coro.
Mais uma táctica do inimigo, concluiu César, o desgaste nervoso. Ahrggg! A espera. A própria morte era melhor que aquela espera.
A traição..., César recupera o fio do pensamento, a pior é a que nos surge pela frente e nos olha nos olhos, cheia de amabilidades, sempre com um sorriso nos lábios, muito amiga e prestável e é com um sorriso no rosto que nos desfere o golpe fatal. Sentimo-nos humilhados por não termos sido capazes de prever o atentado; sentimos-nos humilhados por ter confiado, por termos acolhido o inimigo entre nós.
Desconfiar sempre de quem se ri sem ter vontade, advertiu César a si mesmo e voltou ao trabalho.
Noutro canto da cidade, Marco Júnio Bruto afiava a lâmina do seu punhal. Sorria. Sorria sempre que estava nervoso.

A Busca

| quinta-feira, 8 de abril de 2010 | 10 comentários |
Esmeraldina sugeriu (em tom de desafio) que conseguiria encontrar Romualdo, em qualquer parte do mundo, mesmo que este se escondesse no mais recôndito e inacessível dos lugares. Romualdo primeiro riu-se à gargalhada, mas depois, e como se ela não arredasse da ideia, aceitou o réptil. Esmeraldina era conhecida por esse mundo fora pelos seus dotes de investigadora. Era capaz de encontrar uma agulha num palheiro cheio de agulhas, dizia-se. Uma vez encontrou um homem perdido ainda antes de este perceber que estava perdido. O seu currículo era vasto e Romualdo sabia-o, no entanto julgava-se capaz de escapar àquele faro de raça lobo. A resposta estava no mundo virtual, mais propriamente na blogosfera. Pensava ele que ali estaria a salvo por tempo indefinido, entre poesia, fait-divers, fotografia, design, política, enfim, entre todo um mundo que, de tonitruante e sinuoso não deixava nada a dever à balbúrdia do mundo físico. Se bem o pensou, melhor o fez: com um clique rápido abriu o browser, acedeu ao blog do El Matador, escreveu a palavra passe e num estante cá estava ele, estendido ao comprido. Mal cá chegou descalçou logo os sapatos, parece que gosta de andar descalço na internet, agarrou nuns pedaços de bytes que encontrou espalhados pelo chão e com as mãos que vos escrevo deixou o seguinte recado para Esmeraldina:

Se me estás a ler é porque me encontraste.
Se não me encontraste, estou aqui.

A Conta

| quarta-feira, 7 de abril de 2010 | 4 comentários |
The piano has been drinkin'...

Levantou-se à rasca depois de mais uma noite perdida entre vielas escuras a cheirar a mijo, adolescentes bêbados, polícias brutos, atendimento do pior e música de péssima qualidade. A vida aqui já não é a mesma, pensou. Já não há a alegria ébria de outrora; tudo é forçado, de plástico, em copos minúsculos a arder. «Os problemas resolvem-se à chapada!» viu escrito numa parede, e esta era a frase que explicava todo um estado de espírito noctâmbulo. A bebida bebe-se depressa, sem tempo a perder, há que circular enquanto as pernas ainda andam. Correu para a casa de banho e vomitou os restos do enjoo da noite que, acabara não havia muito tempo. Agora as noites terminam não raramente, para alguns, no hospital; será isto um aviso para abrandar, fazer sinal com o pisca e encostar à berma? «Um dia ainda havemos de nos embebedar por osmose, ou por telepatia, sem sair de casa», o corpo descansava mais é um facto. O que o preocupava mesmo era a memória. A memória, meu Deus, estava cada vez mais... mais...mais o quê? Esqueceu-se do que ia a dizer.
Teria a festa acabado? Era bem provável; os restos apontavam cansaço, depressão e esquecimento. Estava na altura de pedir a conta.

...Not me

O Sacrifício

| terça-feira, 6 de abril de 2010 | 5 comentários |
Foi com desconfiança que Abraão subiu os montes Moriá com o seu filho ao encontro de Deus. «Que me quererá Ele agora?» conjecturava em silêncio Abraão do alto dos seus cento e poucos anos. A subida era lenta e dolorosa devido à provecta idade do patriarca. Isaac, o filho, por seu lado divertia-se como podia; brincava com o cabrito e atirava pedras ás gralhas que tendiam em agoirar a empresa, com o seu voo raso e o gralhar irritante. Era um criança forte e despreocupada, tinha uma vida inteira pela frente carregada de aventuras, prosperidade e outras tantas glórias, o seu nome certamente iria ser recordado por éons de tempo porvir. Um verdadeiro milagre aquele filho – pensava Abraão – Uma verdadeira dádiva. Ele e a mulher riram-se quando receberam a notícia, e com razão. Ele, um velho de noventa e nove anos a passos largos dos cem, ela, uma senhora já na casa dos noventa com a agravante de ser estéril; não, não podia ser possível, e no entanto ali estava ele, cheio de vida, massacrando as gralhas e rindo-se do mundo. «Que me quererá Ele?»
Chegado ao cimo do monte, Abraão, erigiu um altar e sobre ele colocou lenha de modo a proceder-se a um sacrifício, como lhe tinha sido instruído. O ribombar de um trovão e o escurecer do dia era sinal que Deus tinha chegado, Abraão descobriu a cabeça e ordenou a Isaac que fizesse o mesmo.
-Abraão! - Trovejou Deus – Quero que me ofereças o teu filho em sacrifício.
Abraão estremeceu, estava à espera de tudo menos daquilo. O filho, o seu querido filho, por quem ele esperara tantos anos, o milagre da sua vida, o orgulho e resplendor da mãe.
-Não – respondeu Abraão sem certeza do que dizia, os seus ouvidos não acreditavam na sua voz.
-NÃO??? - Enfureceu-se Deus – Como te atreves? Posso destruí-lo com um piscar de olhos.
-Assim será Senhor, mas não com a minha ajuda, aliás, tudo farei para que tal não aconteça e darei a minha vida se para isso for preciso; é em função dele que vivo, se o levares a ele terás que me levar a mim também pois sem ele não sou ninguém. Faço tudo por ti meu Deus, mas isso não me peças, isso é anátema, não consigo. Deixa-nos ficar e ganharás dois fieis servidores em vez de um só, ou nenhum, pois se mo levares não mais te poderei seguir em consciência.
Deus saiu irritado da mesma forma que chegou, num trovão. Abraão e Isaac ofereceram em sacrifício o cabrito que os tinha acompanhado na subida. Foi um primeiro acto de desobediência civil que selou para todo o sempre o amor que os pais sentem pelos filhos; ensinou os homens a não cometerem todo tipo de atrocidades ainda que estas lhes sejam impostas pela autoridade vigente.

Mil Folhas

| domingo, 4 de abril de 2010 | 6 comentários |
“Quão pouco é preciso para ser feliz! O som de uma gaita.
Sem música a vida seria um erro.”
Friedrich Nietzsche


Alambáceo, o sem-abrigo acordou a babar-se. Deitado no chão, apenas um pedaço de cartão o separava da calçada. Sonhou que estava a comer um mil-folhas enquanto bebia uma coca-cola. «Estarei grávido?» perguntou-se, «Não, não pode ser, essas coisas só acontecem às mulheres». Arrumou o chão, varreu a calçada com o boné e guardou a “cama e a mesa-de-de cabeceira” na mochila. Saudou o senhor Abstrúsio, dono do quiosque e perguntou-lhe pelas notícias. O senhor Abstrúsio era como que uma espécie de agência Lusa para Alambáceo, e, como gostava de se fingir de pivot de telejornal, era com agrado que logo pela manhãzinha narrava as desgraças da nação e do mundo ao indigente. «Descobertos mais cinco casos de padres pedófilos» - lia o senhor Abstrúsio com voz grave - «Isso resolvia-se bem era com um ferro em brasa p'lo cú acima deles todos» sugeria Alambáceo. A nível local as notícias não eram mais entusiasmantes «Mulher com unha encravada morre na ambulância a caminho do Hospital» - As sobrancelhas do senhor Abstrúsio arcavam-se de indignação ao mesmo tempo que suspirava. «A culpa dessa e doutras é deste Governo!» rematava Alambáceo, «Ah! Se eu tivesse um ferro em brasa».
Depois de saciar a sede de informação, Alambáceo dirigia-se à sua esquina favorita afim de ganhar uns trocos para o pequeno almoço. Não gostava de mendigar, por isso tocava harmónica. Custava-lhe menos aceitar o dinheiro que lhe dispensavam se estivesse a fazer qualquer coisa, e a música é algo que faz falta às pessoas na cidade logo pela manhã. Alambáceo era aquilo a que ele próprio designava como novo pobre. Porém, ao contrário do novo rico que se torna boçal e arrogante quando a sua situação melhora substancialmente; o novo pobre, como Alambáceo, gosta de manter a sua dignidade através da prática de velhos rituais como a boa educação e a humildade.
Quando não estava na sua esquina, o senhor Alambáceo gostava de ir passear para o jardim. Gostava do ar fresco que por lá se respirava e sentia-se em casa; a natureza era o que lhe restava e podia ser dele, livre de pagamento, das oito da manhã às oito da noite.
Quando chegava a noite, o senhor Alambáceo dirigia-se célere para o local onde ficava o seu quarto improvisado de todas as noites. Se chegasse um pouco mais tarde que fosse o lugar era prontamente ocupado por outros. Já ia apressado quando algo o fez estacar; do balcão montra de um café, um mil-folhas olhava para ele com aquele ar malandro que ele tinha visto no sonho. Ficou longos minutos a contemplar o bolo, à espera que o sonho, por um qualquer passe de mágica, se tornasse realidade.
Naquela noite, Alambáceo dormiu sem sonhar.

Uma Ponte Sobre o Abismo

| quinta-feira, 1 de abril de 2010 | 29 comentários |
A manhã chega...chega...chega
Por onde anda você
?...

Eufrázia era uma intelectual, uma mulher culta, formada, possuidora do mais fino gosto e trato; gostava de ir à ópera e ao teatro e de beber flutes de champagne.
Labregoísio era do género humilde, simples, terra a terra, forte e brutalmente sincero, gostava de caracóis e do Benfica.
Ela, quando frequentava os círculos da intelligentsia da Cidade, discutia filosofia contemporânea, o estado da economia e a influência da arte no pensamento moderno. Era respeitada ao mais alto nível e as suas dissertações eram aguardadas com ansiedade.
Quando Labregoísio saía à noite, já se sabe, era para beber mines e jogar snuckre. Devido à sua formação profissional, não podia ouvir o ruído de um motor sem deixar de dar a sua opinião de entendido. Longas eras as horas que passava nas Tasca do Alambáceo, a explicar a complexidade do motor de explosão a quatro tempos, com os seus cilindros e êmbolos, e o cárter, é importante não esquecer o cárter. Era uma sumidade entre os amantes das bielas.
Ela sofria com o Kafka. Ele sofria com o Cardoso. Ela debatia-se com a eterna dúvida: caviar beluga ou trufas de Alba? Ele, quando não havia tremoços comia amendoíns, o que não podia faltar era a frescura que às vezes o deixava na incerteza: Super-Bock ou Sagres?
Quando num dia de chuva se encontraram, havia entre eles um abismo colossal, mas amaram-se como selvagens à distância de apenas um beijo.

Para a Fábrica de Letras - Abismo