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Eis A Questão

| terça-feira, 23 de novembro de 2010 | 17 comentários |
- Ainda vais gostar de mim quando eu for gorda e careca? – súbita questão feminina.
Era Zubaida quem inquiria. Labregoísio estremeceu: seria esta uma pergunta armadilha? Daquelas artilhadas para pensarmos que o desarmamento é possível; daquelas que nos levam a pensar que a resposta é só cortar o cabo vermelho no último segundo e estamos safos.
A última vez que cortara esse cabo vermelho à confiança, todo o mau feitio de Zubaida explodira-lhe em cheio na cara. Ficou um mês a pão e água, no sofá, com os cães e um cobertor. Agora que tudo voltara à normalidade, que os tratados de paz conjugais haviam sido assinados, que nada de novo havia a oeste do quarto de dormir; eis que Zubaida larga um engenho de consideradas dimensões no hall de entrada.
- Estou à espera – Insiste Zubaida. A contagem decrescente inicia-se. Labregoísio olha para o relógio digital preso ao dispositivo da questão, que presumia ser explosiva, e também ele se liquefaz em rios de suor. Avaliando rapidamente o tamanho e peso da coisa, Labregoísio chega à conclusão que é todo o prédio, senão mesmo o bairro, que está em perigo. Não existe portanto, margem para erros de linguagem, gaguejos ou evasões floreadas.
Do painel principal da bélica interrogação, Labregoísio sabe que tem que evitar a todo o custo os fios vermelhos da gordura e os castanhos da calvície, restando apenas os azuis de neutralidade incógnita. Que fazer? A contagem decrescente, em vermelho implacável, parecia acelerar: 8,7,6,5…Labregoísio descarna os cabos azuis e dá-se conta que a única solução será executar um bypass de charme…4,3,2,1…
- Minha flor! Quando fores gorda, se isso chegar a acontecer, o que não me parece possível, haverá nesse caso mais mulher para amar. E então, como careca já eu sou, seremos o casal perfeito: duas almas gémeas em dois corpos espelhados.
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De Pé Ó Números da Terra

| quinta-feira, 11 de novembro de 2010 | 13 comentários |
Abrenúncio entrou na sala dos contabilistas enfurecidos sem se fazer anunciar. Planta-se no meio da repartição sem que ninguém dê pela sua presença. Os contabilistas matraqueiam, com os dedos já em sangue, as teclas das calculadoras e dos computadores; e gritam alto com as máquinas como quem fala com uma planta. As plantas no entanto crescem mais bonitas se falarmos com elas, já os números não. São obtusos e teimosos, e, quanto mais os contabilistas se enfurecem mais os números se mostram desagradáveis, recusando-se mesmo a mudarem de cor. A matemática é calculista e infalível e não é com gritaria que a levam, toda a gente sabe disso.
Os contabilistas enfurecidos são pessoas rancorosas e nem olham para Abrenúncio quando este se senta numa cadeira ao lado da fotocopiadora.
A guerra entre os contabilistas enfurecidos e os números rebeldes é antiga, já não vem de hoje. Começou quando a certa altura os números em revolta se recusaram a multiplicar. Depois fizeram greve da fome e, cada vez mais magros, deixaram também de somar. É por isso que hoje em dia só sabemos fazer contas de subtrair. Subtraímos aqui e ali e às vezes somos subtraídos também.
Na presente conjuntura, as contas de somar e de multiplicar deram lugar a uma nova operação: as contas de filosofar. Contas que se fazem, tendo como base uma aritmética filosófica que se traduz em perguntas como: e se...? e se amanhã...? ou ainda que hei-de eu fazer se...?
É com questões deste tipo que um povo filosófico-matemático-poeta constrói uma extensa ponte alicerçada de palavras. Palavras gordas e exuberantes, como esperança, que aguentem com o peso de uma debandada geral. O último a sair do país apaga a luz graceja um velhinho de bengala que se vê à rasca para aguentar a passada. Do outro lado está o deserto, a aridez. E assim é que tem que ser, pensa Abrenúncio: se tivermos que ser pobres terá que ser numa geografia desoladora. A pobreza dá-se mal entre os prédios altos e os carros de luxo e os comboios rápidos. Há uma paisagem típica para cada estado de espírito, e no nosso caso, o deserto é a que melhor se adequa.
Abrenúncio segura um envelope fechado. Um envelope branco e frio, pesado como só os envelopes brancos e frios sabem ser. Até os envelopes podem pesar uma tonelada quando se está angustiado. Os contabilistas enfurecidos ainda não deram pela sua presença e por isso Abrenúncio espera. Serão boas notícias? Serão más? Os envelopes fechados da burocracia são como o gato do senhor Schrödinger, enquanto não forem abertos, teoricamente são portadores de boas e más notícias simultaneamente. Enquanto não for aberto, o envelope não revelará a sua verdadeira e definitiva natureza. Entretanto ninguém parece preocupado; os contabilistas enfurecidos continuam com os dedos em sangue; a sala continua cinzenta e baixinha, sem música, sem poesia, sem plantas. E Abrenúncio continua sentado a um canto, à espera, embrutecido com a estranheza destas coisas.

#226

| quinta-feira, 4 de novembro de 2010 | 20 comentários |
- O que vale é que eu sou muito anacléctico!
- Ecléctico, queres tu dizer.
- Não, é anacléctico mesmo, por causa do meu nome: Anacleto.
- Humm, fico feliz por não te chamares Epile.
- Epile?
- Porque se te chamasses Epile eras muito...Esquece.
- É assim, gosto de muitas coisas e variadas, tudo diferente.
- Como a salada de fruta?
- Mais ou menos. Por exemplo, gosto de musica clássica e de heavy metal.
- Os penteados são parecidos.
- Exacto, e se às vezes adormeço a ouvir uns, acordo a ouvir os outros.
- Espero que não adormeças a ouvir heavy metal, por mor dos teus vizinhos.
- As paredes não deixam passar o som, o que é mau.
- É mau?
- Sim. Acho que tudo na vida deveria ser transparente e permeável.
- Como assim?
- Houve em tempos um homem que era totalmente transparente. Quando estava doente, não era preciso muito para chegar ao diagnóstico. Olhavam para ele, os médicos, e logo diziam: Olha! É daquilo que ele está doente. Pois claro, concordavam os especialistas, só pode. E até o próprio homem então, olhava para si próprio e comentava: Ah pois! Eu bem me parecia que aquela mancha não devia estar ali.
- Interessante.
- E mais: Os próprios pensamentos do homem eram transparentes e podiam ver-se a olho nu. Uma vez, estava ele a terminar o namoro com um certa rapariga e saiu-se com aquela clássica: Não és tu querida, sou eu! E nisto, ela olha-lhe para o cérebro e vê-lhe os pensamentos que diziam: Estou tão farto de ti, estás cada vez mais gorda. E logo ali lhe deu uma valente chapada.
- E isso é bom porquê?
- Por causa da sinceridade, homem. Então não vês? Imagina um político em campanha: vou fazer isto, vou fazer aquilo. E as pessoas olharem para ele e verem-lhe as verdadeiras intenções. No futuro, todos os políticos pensariam duas vezes antes de pensar.
- Por outro lado os pensamentos deixariam de ser privados, seríamos uma espécie de big brother transeunte.
- Seríamos sim, condicionados ao pensamento puro, logo à acção pura, como aconselhava o Buda.
- O Buda aconselhava isso?
- Sim, o Buda também era transparente, lá à maneira dele.
- E o homem, o que é que lhe aconteceu?
- Qual homem?
- O transparente.
- Ah! Enforcou-se.

Para a Fábrica de Letras - Transparência