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Dedos que Procuram Aliviar Um Tal de Prurido Sub-Abdominal

| sábado, 31 de dezembro de 2011 | 7 comentários |














Um poema senhor,
pede o homem no lugar da esmola;
Um poema apenas, um verso só: livre como se fosse ruivo.
Das dores ninguém me cura e da morte ninguém me salva:

Um frase simples, um verbo...todas as palavras contam na vida, todas!
As demais magoam as costelas, por isso há que contá-las...como os tostões.

Há que contá-las e rimá-las e confundi-las e acasalá-las, como se de amorzinhos se tratassem.
Mas nada que rime com cordões...Nada!
Há o perigo de  induzir nas falanges mal intencionados, ruins, escabrosas, morgadas, adjectivas, veja só:
ligações metamórficas dessa bolsa testicular, proverbial e rugosa, conhecida por: 
- Escroto!


#271

| | 2 comentários |
Ao que parece, quando a senhora Parker levou o neto a visitar o museu de história natural de nova iorque, nunca lhe passou pela cabeça que o miúdo fosse picado por uma aranha radioactiva. Estremeceu a idosa senhora só de pensar nas consequências:
  • Ai mê deus – Disse ela como quem invoca...Deus. - E se o mê néte desata a amarinhar p'las paredes sem mai' nem ménes, feite parve, todo vestide de vermelhe e azúle como um maulquinhe qualquer saíde do asile? Cruz Créde, livrai-nes senhôr.
Todos os dias úteis, vigiou a senhora Parker o sacrossanto neto, filho do seu filho, neto do seu avô, primo do seu primo, irmão da sua irmã, amigo do seu amigo. Mas nada! As mutações a nível celular que a senhora Parker temia, resquícios da radiação aracnídea: o lançar das teias, o sexto sentido , o subir p'las paredes, a agilidade de portageiro; nenhuma se revelou visível em tempo útil.
A única coisa que o TAC confirmou foi um cancro nos pulmões. O que muito aliviou a senhora Parker: lá em casa ninguém fumava.


http://www.youtube.com/watch?v=y8AWFf7EAc4&ob=av2e

White Russians (agora aprendeu esta dos títulos em inglês, diz que é para agradar a troika)

| sexta-feira, 30 de dezembro de 2011 | 4 comentários |

A esperança é sempre a última a morrer, dizem eles. Ora eu, uma vez quando tinha para aí seis anos, ou sete vá, fui numa excursão a Sagres pela 125, não a azul, aquela da morte de que se fala tanto agora, e nisto o autocarro dá uma guinada forte para esquerda, seguido de uma para a direita, perde o controlo e capota por uma ribanceira abaixo. Só parou por que havia lá embaixo umas rochas enormes que lhe serviram de travão. A minha colega de turma, a Esperança, moça que eu gostava secretamente com afinco desde que tinha começado a gostar de pessoas, para aí aos cinco anos, foi a primeira a morrer. Eu sei porque os contei. Primeiro foi a Esperança, que foi cuspida pelo vidro da frente indo abrir o crânio de encontro a uma das rochas supracitadas. Depois foi o Gustavo que morreu esgasgado com o gelado que lhe entrou de supetão pela garganta adentro. A Adelaide, que era amiga da Esperança e tinha apostado que esta seria a última a morrer, também espatifou a fronte no granito. O Diogo e o Tiago morreram espezinhados quando toda a gente fugiu em debandada, e, como eram gémeos, quando um morreu o outro ressentiu-se morrendo também e vice-versa. Eu só não morri porque estava a dormir e, como cantou o bardo uma vez: you are innocent when you dream. Além de que a morte é uma coisa séria; diga-se de passagem que eu, com seis anos, não estava nada preparado para morrer, por isso acho que tomei a opção correcta.

Ao que parece tudo aconteceu porque uma abelha entrou pela janela do motorista - é motorista ou condutor? Uma abelha, dizia eu, entrou pela janela do chauffeur a zunir para a frente e para trás, tipo abelha Maia (lá está) mas sem a permanente, e o pobre homem, o desgraçado moço digo eu, olha-me para a abelha e pensa: abelhas-flores-rosas. E nisto desata a invocar anos de outrora em que ofereceu pelo aniversário um ramo de rosas, a uma tia sua, mulher do seu tio, ou seja, tia emprestada, mas que era muita mais nova que o tio, muito bonita a magana, que por coincidência era mais ou menos da sua idade, e que, também por coincidência era portadora de umas protuberâncias mamárias dignas de registo mental, ou até mesmo de registo físico, se é que existem actas para tal, e que ele sem querer, quando o tio não estava a ver, escorregou e acabou por fazer o amor com ela.

A imagem da tia, que o visitava todos os anos por alturas das festas, alterou-lhe a disposição de tal forma que, imaginem só, o sangue que normalmente irriga o cérebro e o coração e outras cenas do corpo humano, tipo, concentrou-se todo, feito parvo, no coitado do orgão do homem.

Ora, como todos sabemos, o efeito erectus involuntarius, é uma das principais causas de morte nas estradas deste país. Ainda o homem não tinha feito bem a ligação consciente entre a abelha e a tia mamalhuda, e já o orgão erecto estava a empecer com o volante da viatura, para a esquerda e para a direita, a torto e a direito, como se tivesse vida próprio, o bandido.

Os olhos da Esperança eram verdes; verdes de Esperança, brincávamos nós quando a descreviámos ao Arnaldo que era um amigo nosso daltónico que não foi na excursão porque tinha acordado de manhã com uma diarréia por mór de comer muitos chocolates na véspera.

Anos mais tarde tive contacto com um filme que abordava a história verídica de um escocês highlander, McClaúdio de seu nome, que, esse sim seria o último a morrer. Se a Esperança o tem conhecido a tempo, talvez nunca se lhe encasquetasse na cabeça que seria a última a ir. Hoje se calhar até podíamos estar casados há trinta anos, com pequenas esperançazinhas a correr pelo jardim, a puxar as orelhas ao labrador e a cantar o atirei o pau ao gato. E daí talvez não: se bem me lembro, ainda a Esperança não tinha arrefecido já eu estava vidrado nos olhos azuis da Helena, que por sinal tinha as partes todas do corpo, que como vim a descobrir mais tarde: estavam todas no sítio certo.


Para a Fábrica de Letras - Crise



Charles, You Naughty Boy!

| quinta-feira, 29 de dezembro de 2011 | 8 comentários |
Quando acordou já o natal tinha passado. Teria mesmo? Olhou ao relógio para confirmar: terça-feira, 11 da manhã. Uau, desta vez foi em forte. Começou a beber ainda não eram vésperas, e agora, tinham passado dois dias. Objectivo concluído, pensou, passar o natal sem dar por isso; de fininho, como quem não quer a coisa, assobiando se possível.

Tinha ouvido algures que os cocktails eram constituídos por, pelo menos 3 bebidas, e por isso decidiu fazer uma experiência: misturar vodka, com vodka e vodka. Bombástico sem dúvida. Perigoso? Talvez. Quando um homem se julga um avião e quer à força atirar-se de um primeiro andar como baptismo de voo, a palavra ‘perigoso’ é sempre amparada por ditados populares que garantem a indestrutibilidade do sujeito ébrio.

O natal tinha sido até então, sinónimo de angústia, hipocrisia, solidão e comércio. Naquela noite porém, havia magia no ar; magia natalícia talvez? Não! Ilusionismo etílico.

Sentiu-se um outro homem, um super-homem; ansiava pela salvação das pessoas, desejou ter uma capa vermelha. Embora as ruas estivessem desertas, silenciosas, escuras até, havia sempre um ou outro sem-abrigo com quem confraternizar. Estes sujeitos são meus irmãos de circunstância, reflectiu, e então partilhou a vodka, à volta da fogueira improvisada, num postal de natal urbano onde só faltavam a vaca, o burro e o menino.

Os sem-abrigo acolheram com carinho aquela alma, que tinha vestido umas cuecas vermelhas por cima das calças da ganga e que dizia ser do planeta Krypton. É muito simples, explicava-lhes, com os óculos sou o Clark Kent, sem os óculos sou o super-homem. Punha e tirava os óculos para exemplificar; os indigentes riam cada vez mais desbragados. A garrafa rodava de mão em mão no sentido dos ponteiros do relógio.

Agora está acordado na cama com uma ressaca de dois dias e uma música sentada no cérebro. Trauteou com voz de catarro e bafo-de-onça, you’re a bum, you’re a punk, you’re an old slut on junk, lying there almost dead on a drip in that bed. Que pena não estar em nova Iorque, a música faria bem mais sentido.

Quem serei eu no presépio, interrogou-se. A vaca, o burro ou o menino?

Mais um ano, novo outra vez, como todos os outros. Bah! Os melhores anos tinham sido aqueles de que não se lembrava. 2012! Nossa senhora, parece que este é que vai ser. O mundo a acabar e mais não sei o quê. A culpa é dos Maias: aquela história do Carlos ter andado a comer a irmã tinha que dar em merda.

http://www.youtube.com/watch?v=HwHyuraau4Q

A Conversão

| sexta-feira, 23 de dezembro de 2011 | 5 comentários |
A princípio pensou ter passado por cima de um anúncio da coca-cola. Só depois é que viu que tinha atropelado o pai natal. Saiu do carro, coçou a cabeça embaraçado: olha que chatice, não vem nada a jeito. As renas que sobreviveram levantaram voo a coxear, deixando para trás aquele som característico de guizos desafinados. O pai natal jazia inerte na berma da estrada. O fio de sangue que lhe escorria pela boca parecia querer juntar-se ao traço contínuo. 24 de dezembro à noite numa estrada deserta, as lojas todas fechadas; só existe uma solução possível, pensou Abrenúncio: enterrar o pai natal e rezar para que o menino jesus exista mesmo.
Chegou a casa com cara de caso a assobiar e a mulher pensou que estivesse bêbado. Ao longo da noite e sempre que alguem mencionava o velho lapão, Abrenúncio assobiava. Que grande camada, pensava a mulher.
No dia seguinte, de manhãzinha cedo, ainda envolto nos restos da teia onírica, Abrenúncio acordou sem ressaca, e, qual criança ansiosa correu para a sala. Lá estava ela, a árvore de natal com as luzinhas dos chineses a piscar, repleta de embrulhos pela base. Afinal era verdade, ele existia mesmo, louvado seja, balbuciou, numa conversão relâmpago. Pouco depois já os putos gritavam alegria e excitação ligados à playstation III. A mulher, com um sorriso que lhe ia de uma orelha à mesma, pois dava a volta à cara toda, babava-se em frente da bimby ao mesmo tempo que lhe tirava fotografias com o novo iphone4. Tu não és nada um bêbado, gritava ela para Abrenúncio, tu és é um amor, ouviste? Um AMOR!
Abrenúncio decidiu então com um assobio, que agora já se lhe tornara num tique nervoso, que aquilo devia ser um dos tais milgares de natal que tanto ouvira falar. Sentou-se à frente do computador e foi à página do menino jesus no facebook. Carregou no botão gosto, coisa a que o facebook retribuiu de imediato: gostas disto. É que gosto mesmo, sublinhou Abrenúncio em voz alta. ÉS UM AMOR! Gritou-lhe a mulher, da cozinha.

Pedro e o Lobo

| sexta-feira, 16 de dezembro de 2011 | 11 comentários |
Pedro era um rapaz bem apresentado e muito vistoso, pelo menos se levarmos em conta o ponto de vista das raparigas, que se enchiam de sorrisos e de chiliques cada vez que Pedro se acercava delas. Raparigas estas que Pedro, em guisa de retribuição, se esforçava por impressionar cada vez que desmontava da sua bicicleta branca de freestyle, que o pai lhe comprara. Ora, sendo Pedro um moço absolutamente banal, desinteressante mesmo, sem nenhuma qualidade extraordinária a que se lhe dissesse benza-o Deus, não restava muito com que impressionar as moçoilas. E assim, sem querer, ou talvez de propósito, Pedro, ao longos dos anos acabou por desenvolver uma tendência patológica para a mentira. Quando chegava ao pé da meninas com as calças cheias de pêlo, por ter estado a brincar com o caniche de estimação, Pedro metamorfoseava a narrativa de tal forma que aquilo que lhe acabava por sair da boca, para grande espanto e excitação das raparigas, era que tinha entrado em confronto directo com o Lobo. A escolha do Lobo aqui é evidente uma vez que Pedro conhecia bem a carga sexual que as histórias com lobos costumam acarretar, veja-se o caso do Capuchinho Vermelho que ia sendo comida por um.
Volta e meia chegava Pedro desarvorado no seu alvo rocinante, arfante, aos gritos: é o Lobo, é o Lobo!!! E logo as criaturinhas largavam todas num correria histérica de mãos no ar, soltando ais e uis demonstrando bem a vontade que tinham em não ser comidas (ainda).
Passado o susto inicial e certificando-se que não havia sinais de Lobo nas redondezas, voltavam pouco a pouco ao café central apenas para encontrar Pedro, de peito cheio, numa pose garbosa de matador, a sacudir o pó dos ombros. Depois começava o fogo de artifício mitómano. Pedro desfiava um chorrilho de patranhas, de como tinha feito frente ao Lobo e lhe tinha arrancado o pêlo e lhe tinha dado uma coça que ele nunca mais se esqueceria e por aí fora, e entretanto as miudinhas suspiravam e mordiam os lencinhos, e uma sensação agradável descia-lhes ao baixo ventre e tremiam-lhes as pernas. Pedro era um héroi...E tão bonito.
Ora, o problema das cidades pequenas é que toda a gente sabe tudo de todos, e a história acabou por chegar inevitavelmente aos ouvidos do Lobo. Este cofiou a barba, num gesto de quem acaba de ouvir uma história interessante, verbalizando-o até: Hummm, que interessante!
Numa noite de sexta-feira em que Pedro se dirigia à baixa, todo preparado para se autopromover à conta do Lobo, deu de caras com o próprio numa travessa escura e pouco frequentada.
O Lobo, que era de poucas palavras, sendo o animal de acção que todos conhecemos, logo ali o sodomizou à bruta. Depois acendeu um cigarro com o ar mais cool alguma vez visto numa história infantil. Agora já tens uma história para contar, disse o Lobo com desprezo, e nisto virou-lhe as costas e foi-se embora, não sem antes soltar dois uivos prolongados à lua.
No chão ficou Pedro lavado em lágrimas, chorando copiosamente baba e ranho.
O que mais custava a Pedro não era o tremendo ardor que sentia subir-lhe pelo ânus; nem sequer por não se conseguir sentar ou andar a direito, a dor de Pedro tinha outras origens: sobrevinha de lhe ter caído a máscara. Agora já não se podia mais esconder, o Lobo sabia quem ele era.

Ali Vai o Homem

| quarta-feira, 7 de dezembro de 2011 | 10 comentários |
Hermenegildo, o homem, depois de um apurado estudo sobre a sua condição socio-económica, depois de um extensivo corte nas gorduras quotidianas, de um apertar de cinto radical nos vícios, de um auto-controlo espartano na alimentação, Hermenegildo, o homem, criativo que era, sonhador de nascença, decidiu dar um passo mais à frente na corrida contra a dívida, que o senhor primeiro ministro dizia ser de todos, ainda que ele não devesse nada a ninguém.
Hermenegildo, o homem, naquela manhã de nevoeiro, tomou a decisão de poupar no oxigénio. Dali em diante não respiraria mais às terças e quintas. Dois dias por semana: um pequeno esforço para o indivíduo, mas um salto gigantesco para a Nação. Hermenegildo, o homem, seria o novo farol de Alexandria da poupança nacional e quiçá do mundo, um exemplo a seguir, uma história para se contar às criancinhas na escola primária em dias de chuva. Ali vai Hermenegildo, diriam as pessoas, o homem que deixou de respirar para ajudar o país, e aplaudiriam, e Hermenegildo, modesto que era na sua criatividade e engenho, acenaria um tanto ou quanto incomodado com a distinção.
Na manhã seguinte à manhã de nevoeiro em que tomou a decisão, era uma terça-feira e também estava nevoeiro. Hermenegildo levantou-se, tomou o café sem açucar, sentou-se na cozinha e deixou de respirar.
O sucesso foi imediato e superou todas as expectativas, um dia apenas e nunca mais Hermenegildo teve que repetir o sacrifício.

Arbeit Macht Frei

| quarta-feira, 23 de novembro de 2011 | 11 comentários |
A Formiga fartava-se de trabalhar o ano todo. Na Primavera, à soalheira do Verão, no Outono, enfim...Uma canseira daquelas de raça lobo, tudo para poder ter um Inverno no sossego do Senhor. Quando se levantava de manhã, ainda antes do sol nascer, para ir para a fábrica, assistia ao espectáculo que era a Cigarra a chegar a casa de táxi, ainda bêbada da noite. Excitada, e como gostava de dar nas vistas, a Cigarra, ao ver as formigas em fila indiana, desatava numa cantoria despegada: Ó GENTE DA MINHA TERRAAAAA!!! - Dava uns goles no que restava da garrafa de vodka, gargalhava disparatadamente e entrava em casa, onde se punha a dormir o dia todo.
Eram da mesma a idade, a cigarra e a formiga. Tinham andado à escola juntas. Depois a formiga seguiu o seu destino de operária e a cigarra o caminho da juventude partidária. A formiga não odiava a cigarra, não, antes invejava-a. De manhã, quando ao frio assistia à chegada da cigarra de mais uma festa glamorosa, não podia se não quedar-se a imaginar como seria ir a um evento daquela espécie, com roupas bonitas, gente alegre e comida à farta. Sobrava-lhe apenas o consolo de saber que o trabalho esforçado, de muitas horas, muitos dias e muitos meses, o trabalho honrado como era o seu, um dia, no futuro, proporcionar-lhe-ia os momentos de descanso e de lazer que ela tanto cobiçava à Cigarra. Talvez até ir de férias – sonhava a Formiga.
Um dia, depois de mais uma longa jornada de trabalho, estava a Formiga a descansar quando recebe a inusitada visita do La Fontaine. Desconfiou. De cenho carregado, mandou-o entrar.
La Fontaine, já à vontade na casa da Formiga, como qualquer patrão, começou a falar com os gestos largos e abundantes, típicos das falas mansas que antecedem as más notícias.
- Tenho boas notícias – Começou La Fontaine – Vais manter o emprego. A Formiga suspirou de alívio.
- No entanto... – A Formiga sabia que tinha que haver um “no entanto”, o patrão não tinha ido a sua casa só para lhe confirmar o posto de trabalho. E La Fontaine prosseguiu em tom de choradinho, que a crise também tinha chegado em força ao mundo das fábulas, que tinha havido uns investimentos mal pensados por parte da Cigarra, que os mercados estavam chateados, enfurecidos mesmo, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá e que por tudo isso vinha aí a austeridade: mais horas de trabalho, menos ordenado, férias? Nem pensar nisso nos próximos anos, temos é que trabalhar mais, muito mais, para que os mercados voltem a ganhar confiança na Cigarra, sem isso, a fábula não funciona.
- Sabes como é, Formiga, a fábula precisa do esforço de todos nós, somos todos parte integrante desta imensa e generosa fábula. Temos todos que desempenhar o nosso papel.
- E qual é o meu papel? – perguntou a formiga com voz de olheiras.
- Bom...O meu é escrever – Pigarreou La Fontaine - O da Cigarra é cantar,  e o teu é trabalhar. Mas não penses que o teu papel é menos importante que o meu ou o da Cigarra, não, não fiques com essa ideia, cada função é essencial para a fábula. A fábula é a soma das partes. 
O importante é não irritar os mercados. Lembra-te que da última vez que os mercados se chatearam o Lobo Mau comeu a Avózinha. Percebeste?
A Formiga fez que sim com a cabeça e foi deitar-se.
De manhãzinha enquanto se preparava para trabalhar, ouviu a gritaria da Cigarra: Ó GENTE DA MINHA TERRAAAAA!!!
Três pensamentos assaltaram-lhe o espírito: o primeiro foi suicidar-se, o segundo foi revoltar-se nas ruas, o terceiro foi matar a Cigarra. Mas, como era uma formiga de hábitos brandos, vestiu o casacão e saiu para trabalhar.
Ao mesmo tempo, noutro canto da fábula, Abrenúncio passeava no jardim com sangue a pingar-lhe do nariz.


Septoplastia - It's a Bitch!

| quinta-feira, 10 de novembro de 2011 | 6 comentários |
Há sangue e ranho por todo o lado, por isso, nos próximos tempos não contem comigo.

X

| sábado, 5 de novembro de 2011 | 10 comentários |
Labregoísio era um indivíduo que só compreendia o que via com os olhos, ou o que conseguia visualizar na cabeça. Só compreendia imagens, portanto. E por isso era pouco dado à poesia e às artes abstractas e à matemática, que diga-se, fora o seu terror na juventude. Quando na escola lhe pediam para descobrir X, Labregoísio, em modo de piloto automático imaginava-se logo um detective de gabardine e cachimbo na boca, qual Sherlock Holmes, à procura do tal X. Quem será este X e porque andará toda a gente à procura dele? -  imaginava Labregoísio. E a partir daí, via a incessante demanda de um homem solitário em busca de um ser cruzado, que quase sempre era alvo de operações obscuras para ser encontrado. Abstraía-se muito mas nunca conseguia abstraccionar-se.
Para ele, o amor era um coração sangrento atravessado por uma seta. E quando lhe falavam da dor, dessa dor que não é física, que não se vê, daquela que sofrem os apaixonados e os lunáticos, ele à falta de melhor ia buscar a imagem do coração e da seta; e foi assim que deduziu sozinho que paixão era sinónimo de sofrimento.
Era um homem simples e não se importava de todo quando lhe gritavam: queres que te faça um desenho? Pelo contrário, mostrava-se agradecido e encantado com a gentileza de quem se dispunha a ajudá-lo.
O que não via não lhe afectava,  por isso era um homem feliz; e foi assim que deduziu sozinho que o que os olhos não vêem, o coração não sente.
Também nunca chegou a encontrar o tal X.

Despertemos!

| sexta-feira, 21 de outubro de 2011 | 13 comentários |
Todos os dias de manhã, duas senhoras testemunhas de Jeová pedem-me encarecidamente para lhes jogar a literatura para o lixo. Passa-se mais ou menos assim:
- Bom dia jovem (gosto), importa-se de nos fazer um favor e jogar este exemplar do Despertai! para o lixo?
- Com certeza – Respondo educadamente, e imbuído de um espírito escoteiro que nunca tive lá carrego o panfleto até ao balde de lixo mais próximo. É uma sensação boa, esta de ajudar as pessoas logo pela manhã.
Agora para algo completamente diferente; Despertai!? A sério? Para acordar já tenho dois dispositivos lá em casa: um que me assusta, outro que me deixa em pânico, ambos são irritantes. Minhas senhoras, do que eu preciso de manhã é de um balde de café forte, mas como o médico me cortou a cafeína finjo que desperto com o sucedâneo descafeinado.
Como declaração de interesses devo ainda esclarecer que a única crença que me move é a do Unicórnio Cor-de-Rosa Invisível, como é atestado no frontispício. Gosto de seres místicos e alados. Ainda não o vi porque é invisível, tenho fé no seu poder porque consegue ser cor-de-rosa ainda que invisível, acredito que criou o mundo porque ainda não me provaram o contrário.

A Escolha

| sexta-feira, 14 de outubro de 2011 | 9 comentários |
O senhor Hermenegildo Bagarrão não sabia se havia de comprar o bilhete para o jogo ou de almoçar. Era uma chatice cada vez que se punha a pensar no assunto, e, como o jogo estivesse quase no início, ponderou. O que é o dinheiro se não uma mera formalidade envolvida na troca de bens e serviços; o jogo é um serviço. A comida é uma satisfação... necessária? Perguntou-se. Segurou a barriga com ambas mãos e apertou os pneus - A Zubaida passa a vida a dizer que tenho que perder isto – Posso começar agora. A ideia da mulher trouxe de arrasto a imagem dos filhos, há que pensar neles, é imperativo. - Os putos comem na escola! - Assunto arrumado. Como era um católico fervoroso às vezes, veio-lhe à ideia, à laia de alívio de consciência, frases soltas que o senhor prior proferia aos domingos - a carne é fraca, o espírito é eterno, a salvação da alma é mais importante que a do corpo – frases que o incomodaram, é certo, no passado mas que agora se revestiam de alento. Que mais poderia ele fazer se não esquecer o corpo e alimentar a alma? Que melhor colírio para o espírito do que assistir aos golos do seu clube do coração.
Além disso, quantos dias pode um homem passar sem comer, trinta? Quarenta? Dava para assistir a pelo menos quatro jogos. É sabido que sem bebida é que um indivíduo não pode passar, é fatal dizem eles, mas quanto a isso estava garantido: tinha o frigorífico carregado de minis.

#259

| quarta-feira, 21 de setembro de 2011 | 14 comentários |
Na cidade pequena confunde-se a grandeza com prédios altos. Descaracterizada, a cidade cresce para cima. As pessoas pequenas da cidade pequena sobem ao topo dos prédios altos e julgam-se grandes; olham para baixo e para a frente, abarcam o horizonte com gestos largos e dizem: - tudo isto é meu!
As pessoas pequenas da cidade gostam de usar frases grandes para dizer pouca coisa; na sua avaliação constante da grandeza julgam-na intimamente ligada ao comprimento da gramática. É tudo uma questão de métrica dizem uns, ou mesmo quilométrica apressam-se a afirmar outros. O progresso na cidade pequena faz-se na periferia em abandono do centro. As pessoas pequenas têm horror ao centro onde toda a gente anda a pé. Andar a pé não é progressivo, dizem gramaticalmente quilométricas: - Como pode ser isso então? Se assim fosse Deus nunca teria criado os automóveis. Antigamente no centro, as casas eram pequenas e singelas e nisso residia toda a sua grandeza; depois vieram as pessoas pequenas e elevaram construções grandes para poderem lá do alto ver melhor as luzes da periferia. A periferia, que é onde está o progresso assemelha-se a uma feira. Para as pessoas pequenas o progresso, as luzes brilhantes e a algazarra andam de mãos dadas com progresso. Se Deus não quisesse ruído não tinha inventado as buzinas – dizem eles- e buzinam noite fora, cheios de progresso e grandeza.
Outro sinal de indefectível grandeza das pessoas pequenas, são as estradas. As estradas são a seiva que corre nas veias das pessoas da cidade pequena. É na estrada que comem bebem e convivem. É na estrada que riem e choram. O indivíduo pequeno na cidade pequena só se sente definitivamente grande quando está junto a uma estrada ou em cima dela, e, como se sentia incompleto por nunca ter estado debaixo de uma, foi alcatroado o cemitério.
As pessoas pequenas da cidade pequena, sentem-se orgulhosas da sua obra e dizem: somos uma cidade grande – somos uma grande cidade. Dizem isto porque não compreendem o conceito de relatividade.

...A Sul

| segunda-feira, 19 de setembro de 2011 | 14 comentários |
…Tenho saudades da chuva. De andar de botas de água a chapinhar nas poças, admirar os girinos e apanhar agúidas. De patinar na lama e ver os outros atascados como se afundassem em areias movediças. Uma vez um amigo meu, cujo nome já não me lembro, num desses concursos de atolance, ficou de tal forma atolado que quando o puxámos, as botas ficaram lá, e ele teve que ir em meias para casa e da rua ouviram-se os gritos da sua mãe.
Mas aqui já não chove e agora já não há terra para fazer lama para os miúdos se poderem atolar. Há no entanto, muitos prédios que fazem sombra e carros que passam muito depressa, e jardins que nunca o foram senão em projecto, por isso os miúdos, podem não brincar na lama nem apanhar agúidas, mas podem engordar à sombra ou ser atropelados, o que é muito mais excitante.
Tenho saudades do frio. De dormir aconchegado por debaixo de mantas e edredons. Lembro-me de ir para a escola, a bater o queixo, com a roupa vestida por cima do pijama, de usar cachecol, luvas e gorro, acessórios que hoje me parecem um tanto estranhos quando me falam deles. Hoje durmo nu, o que também é divertido, mas há um tempo para tudo na vida de um indivíduo. O bafo quente que sopra do Sahara avança de dia para dia, como uma maré silenciosa de areia e mistério. Os meus olhos mudam de cor; do azul do mar para o castanho das dunas. As dunas são vagas que avançam silenciosas, áridas, desérticas, altas como tsunamis.
Na televisão, de vez em quando, falam do sul; o sul isto, o sul aquilo…Mas o sul onde eu vivo é outro: é um sul que fica a sul do sul. Para lá disto não existe mais nada, só o deserto, que é o norte de coisa nenhuma.
Queixo-me de barriga cheia. Sou um ingrato. Dormir nu não é mau. Costumo acordar e espreguiçar-me longamente na varanda aproveitando o fresquinho da manhã. Os meus vizinhos é que não gostam nada, ficam logo mal dispostos.

O Mar Cruel, O Mar Cruel...

| segunda-feira, 5 de setembro de 2011 | 9 comentários |
- O que fazer quando não temos um livro para ler?
- Podes sempre escrever um.
- É uma ideia mas não saberia por onde começar.
- Começa pelo princípio, é sempre um bom começo.
- No princípio era o verbo, depois apareceram os surfistas. Eram dois. Dois mais a assistente da praxe a acompanhar. Podia ser irmã, namorada, prima, escolhe tu, o parentesco não interessa aqui. É engraçado como o idílio da maioria das pessoas reside na proverbial praia deserta, com os coqueiros a abanar ao vento e o mar azul, mas se reparares bem, as pessoas na praia gostam é de estar amontoadas em grupos enormes muito colados uns aos outros; mesmo que exista ali ao lado um areal imenso para desbravar,  vão colocar a sombrinha onde estiver mais gente…
- Não respeitam a distância higiénica.
- Exacto, nem a física, nem a mental. Dizia eu que os surfistas eram dois, mais a rapariga para impressionar claro está. O mar? Estava raso. Raso digo-te eu. Parecia um tapete azul muito esticado, sem um vinco, sem uma ruga que fosse. No entanto os moços vestiram os fatos de pinguim e fizeram-se ao mar na mesma. A miúda despediu-se deles emocionada, de lágrima fácil no canto do olho, como que antecipando uma viuvez anunciada; porque isto de um homem ir para o mar já se sabe…
E eles lá foram, com a água pelos joelhos; rasinha, flat como eles dizem, porque um homem nunca não desiste, não é?
Montaram-se nas tábuas, com o elástico preso ao artelho, e ali ficaram, a mirar o horizonte. Passado um bocado remaram para a esquerda e quedaram-se a olhar para o horizonte mais um bocadinho. Depois remaram para a direita e lá estava o horizonte no mesmo sítio, e eles olharam para ele.
A rapariga também fitava o horizonte, ansiosa; quando voltariam os seus homens? E chegariam salvos? De fundo ouvia-se, não sei vinda de onde, a Canção do Mar, versão Dulce Pontes, como se fosse o vento a assobiar.
A páginas tantas, os moços saltaram das tábuas e, com a água pelos joelhos, assim como entraram, saíram do mar. Estavam estafados, moídos, que isto de olhar o horizonte também cansa, porra.
A moça, qual Penélope, ao ver chegar não um Ulisses mas dois, não se conteve mais, ajoelhou-se a beijar a areia e agradeceu a Deus e à Nossa Senhora dos Navegantes e a Poseidon e a Neptuno, que se não me engano são a mesma pessoa.
Eles, finalmente em terra firme, espetaram as tábuas na areia, abancaram de encontro às dunas e comeram croissaints. Estranhamente pareceram-me mais loiros do que quando chegaram.
- Então, o que é que achas?
- A próxima vez que fores para a praia não te esqueças do livro em casa.

#256

| sexta-feira, 2 de setembro de 2011 | 6 comentários |
Gervásio, o Cruel, mastigava furioso um naco de carne em sangue, o maior da travessa, porque era o chefe. Levava a comida à boca com as mãos e limpava-se com as costas das mesmas, por isso a gordura espalhava-se-lhe pela barba comprida e escorria-lhe dos pulsos. Gervásio, o cruel, era o chefe, o líder da tribo, e, por isso tudo lhe era permitido, desde o comer com as mãos ao soltar flatulências sonoras em pleno banquete. Quando isso acontecia, os convivas quedavam-se num silêncio completo, atemorizados só de pensar na ira anunciada de Gervásio, o cruel. Este no entanto começava por exibir um sorrisinho cínico que nascia no canto direito da bocarra e alastrava-se como um tremor de terra por toda a cara até se transformar numa ribombante gargalhada. Os bobos e outros saltimbancos, mais atentos às luas do líder, largavam aos saltos e pinotes cantando em falsete e batendo em latas. Era o sinal de que tudo estava bem, que a situação não era incómoda nem de terror, antes de alegria e celebração, então toda a corte largava numa saudável salva de palmas, o que muito agradava a Gervásio, o Cruel. A interpretação dos arlequins podia salvar vidas, ou acabar com elas. Um sorriso mal colocado, ou a falta dele logo a seguir a uma anedota sem piada do líder podia ser o suficiente para um indivíduo se auto-sentenciar à morte.
Gervásio, o Cruel, não era o mais forte, nem o mais inteligente, nem sequer o mais hábil membro da tribo, era sim o mais Cruel, e por isso se tornara chefe, e por isso era temido.
Um dia, um caixeiro-viajante de outro reino, ao jantar na corte com Gervásio, o Cruel, reparou que este comia com as mãos. Então lembrou-se como gesto de cortesia e de apreço pelo anfitrião oferecer-lhe um conjunto de talheres de prata.
- Para que serve isto? – Inquiriu curioso Gervásio, o Cruel.
- É para comer majestade! – E como se o outro apresentasse um ar de ignorância bovina, apressou-se a demonstrar-lhe com a faca e o garfo cortando-lhe um perfeito filete de lombo assado.
Gervásio, o Cruel, segurou o garfo com espanto, passou-o de uma mão para a outra, observou-o atentamente, e, com um gesto relâmpago espetou o utensílio no olho direito do viajante. Acto contínuo arrancou-lho da órbita e meteu-o na boca. Na sala era o vácuo, os saltimbancos há muito que se haviam escondido debaixo da mesa.  Depois de mastigar vagarosamente, Gervásio, o Cruel sentenciou:
- O olho é bom! – E nisto peidou-se ruidosamente. Os bobos largaram de imediato aos saltos e aos gritos na barulheira habitual e toda a gente na corte fez o que habitualmente fazia quando o líder se peidava, bateu palmas.

2 de Agosto

| domingo, 7 de agosto de 2011 | 20 comentários |
Os amigos. Os amigos são as pessoas mais estranhas do mundo. Estes amigos não são os meus. Os meus amigos eu conheço de pequenino, e não são estes. Estes riem-se comigo e de mim (a maior parte das vezes), empurram-me e pregam-me partidas, fazem-me cair e aleijam-me nos joelhos. Quem são estas pessoas que tendem a seguir-me? Metem-me canecas de cerveja na mão e pagam-me whisky, e pedem que cante ou toque guitarra ou declame poemas. Mas eu não sei nenhum poema de cor, a não ser aquele do Fernando Pessoa que diz que o poeta é um fingidor e eu finjo que sei o poema mas nunca o declamo porque na realidade não o sei, como aquele do Alberto Caeiro que diz que o menino Jesus vem a descer pelas encostas do monte e que o Espirito Santo é uma pomba que suja as cadeiras; esse também não sei, pronto: há dois poemas que eu não sei de cor e são os dois do Fernando Pessoa, se bem que um seja do heterónimo; e por isso desvio a conversa e pedem-me para tocar guitarra. Mas de onde é que veio esta mania que eu sei tocar guitarra? Se fossem meus amigos sabiam que eu não sei sequer quantas cordas tem uma guitarra, a não ser que a mais grave é o mi e a mais aguda é o mi também e que pelo meio tem o lá, o ré, o sol, o si e o mi outra vez, já tinha dito é mais aguda, e por isso disfarço, sou um artista do disfarce isso sim, disfarço que sei tocar guitarra mas nunca toco, e quando me apresentam uma, dou socos na parede e desculpo-me que com a mão dorida que não consigo tocar. E então dão-me baldes de whisky e cerveja, é para celebrar, dizem eles, e eu conto piadas, porque as celebrações dão-me vontade de rir, e as piadas agradam a uns mas desgostam a outros, mas a vida é assim, não se pode agradar toda a gente, e se eu os conhecesse ao menos, até podia tentar, mas a noite já vai longa e não me apetece, não há amor que não dê em ódio nem ódio que não dê em amor, como diz o Matador. Quando estou bêbado penso que sou ele, e disse-lhes: Sou o El Matador. Assim mesmo, de repente. Eles riram-se muito porque não fazem ideia de quem seja tal personagem, e eu também não lhes expliquei porque também não sei. Às vezes vejo-o, no reflexo das águas ou nalgum espelho mas nunca o consigo discernir e por isso esqueço-o. Recebi beijinhos de duas loiras, uma que era ruiva e passou a loira ou talvez o contrário e outra que era mesmo loira e agora tem o cabelo preto. Não me lembro da conversa mas sei que cantei porque me pediram, embora eu não saiba cantar mas tenha esta queda para palhaço. Quando me visto de palhaço gosto que me chamem de Anacleto, mas todos me chamam por outro nome, porque não me conhecem. Aos domingos visto-me de mulher e passeio de ressaca com os saltos altos que eram da minha mãe, que já não tenho. Às vezes, para dar um toque mais andrógino coloco uma gravata do meu pai, que também já não tenho. Sou orfão, como a Annie e talvez devesse pintar o cabelo de ruivo. A Annie tinha um cão e uma banda sonora do Kid Creole & the Coconuts, mas eu não tenho cão e quando é de manhã e tou de ressaca, na minha cabeça passam sempre os Einstürzende Neubauten que tocam com berbequins e cantam em alemão e que eu não percebo nada porque me baldei às aulas no segundo ano para jogar snooker. Hoje tenho um diploma de snooker que não me serve para nada. Se falasse alemão citava aos meus amigos frases célebres do Nietzsche, na lingua original, o que impressiona sempre muito, como aquela do abismo a olhar para nós. Assim não digo nada, porque não sei alemão e porque não vejo os meus amigos desde pequenino, desde a adolescência vá lá

Estranho Lugar, Aqui.

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...Estranho lugar, aqui. Onde a mais singela beleza e hedionda feiura cruzam a paisagem de mãos dadas, como duas amantes. Não há bela sem senão, ensinam-nos de pequeninos.Há até contos de fadas que nos preparam para essa fatalidade. Como quem nos vai mentalizando para o que há-de vir: Olha que a vida não são só gelados de chocolate, meu menino, também tens que apanhar muita chapada nessa fronha. E os meninos crescem sem estranhar as chapadas na cara que a vida lhes dá. Não reclamam; ficam à espera dos gelados de chocolate. São os acomodados: os felizes.
Há os que se apercebem, no entanto, que a distribuição de estaladas e gelados de chocolate, não é equânime. São inconformados: infelizes.
As mulheres tem parte igual nesta tragédia, se não a pior parte. Entre a opção de felicidade e infelicidade escolhem livremente a segunda; porque foram cerebralmente lavadas desde pequeninas a se tornarem numa versão urbana da Branca de Neve; ainda que às vezes o príncipe não venha de cavalo mas sim agarrado a ele.
É esta a sensação que tenho ao ver os prédios na praia. Uma profunda tristeza na assumpção de que todo o amor vem carregado com uma generosa dose de ódio. Dose esta que alimentamos de bom grado; acarinhamo-lo, regamo-lo e falamos com ele, como se duma planta se tratasse, até que cresça forte e viçoso. Por outras palavras, o nosso olhar não recai no belo mas no horrível, é o seu ponto de fuga, é onde descansa mais sossegado, como os prédios na praia: é o preço de sermos civilizados.

Os Dias

| terça-feira, 12 de julho de 2011 | 9 comentários |
Os dias passam e a caravana passa. Não, não é bem assim. Os cães ladram e os dias passam. Não! Também não me parece que seja assim o adágio!?
Havia já alguns dias que Labregoísio se debatia com o dito popular, como se dum enigma se tratasse; um quebra-cabeças, uma adivinha. O que ele sabia era que os dias pareciam passar mesmo, indiferentes a qualquer polémica pareciam sair ilesos das disputas entre cães e caravanas.
Os dias passam, em catadupa, uns a seguir aos outros, sem travão, sem vergonha, a despeito de rugas e cabelos brancos que com eles se arrastam. E as artroses e artrites e reumáticos e flebites, de quem é a culpa? Do tempo, depurado em dias, que passa mesmo, parece já não haver dúvidas. Ora bolas! Suspirou Labregoísio. Haverá alguma forma de impedir a passagem arrebatadora dos dias, a sua fúria, a sua erosão? Um dia lembrou-se e saiu à rua, logo de manhãzinha para que os dias percebessem a mensagem, e plantou-se em frente de casa, de cartaz na mão, com uma mensagem clara para os dias: Não Passarão! Mas passaram na mesma, os cabrões. Passam sempre. Quem? Os dias ou os cabrões? Os dois.
O que fazer? Labregoísio pesquisa uma forma de enganar os dias; um meio de atenuar a sua passagem pelo menos. É que a esta velocidade acabamos por não ter tempo para nada, nem sequer para apreciar os dias – Explicava Labregoísio aos vizinhos quando estes o encontravam na rua de pijama e cartaz na mão logo pela madrugada.
Um indivíduo um dia acorda e zás!!! Já passaram uma mão cheia de dias, sem que ninguém avissasse. Um dia andamos a correr à sua frente, na maior das despreocupações, e no dia a seguinte já voamos esbaforidos atrás deles,como se não houvesse amanhã. 'Como se não houvesse amanhã' - quem é que inventou esta? Há sempre amanhã! Quando não há para uns há para outros, já se concluiu: eles passam dê lá por onde der.
Em Marte os dias são mais longos; talvez devêssemos viajar para lá. Não os podemos contrariar mas podemos percepcioná-los mais devagar. Imaginem: Uma pessoa de 40 anos, se tivesse nascido em Marte teria agora sensivelmente 20. Um jovem portanto. E em Júpiter, mais além, o indíviduo cheio de experiência e sabedoria teria apenas 3 aninhos, e em Saturno, no meio de tanto anel, apenas 1.
A resposta parece portanto residir na viagem. No movimento para a frente e para longe. Pegar na relatividade e domesticá-la. Eles passam, já sabemos, o importante é o que fazer com eles.
Labregoísio estalou os dedos como quem grita eureka. Tinha solucionado o puzzle. O ditado afinal era simplicíssimo: Os dias ladram e a caravana passa.

Móce, ò Moody's: Vai Cagar!

| quarta-feira, 6 de julho de 2011 | 10 comentários |
Só lhe apetecia mandá-la à merda: à agência de rating, à colega de trabalho já só pensava em matá-la. Era automático, sempre que ela abria a boca e desatava numa daquelas verborreias que sugavam o ar todo da sala, era inevitável que as ideias homicidas surgissem. Durante muito tempo eram ideias suicidas as que primeiro lhe chegavam às franjas do cérebro sempre que ela se punha com aquela litania «ai eu trabalho muito, ai eu tou muito cansada, ai o meu marido isto, ai o meu cão aquilo, ai eu é que sou a coordenadora...», viu-se muitas vezes a regar-se com gasolina e imolar-se pelo fogo, como aquele monge no Vietname ou o puto na República Checa. Mas depois punha-se a pensar e chegava à conclusão que ela provavelmente nem daria pelo o sacrifício e continuaria a falar ad aeternum.
Na rádio, a TSF transmitia em loop que o Pedro Palhaço Coelho tinha apanhado um soco estômago. Bem feita, pensou Romualdo. O rapaz sentiu-se traído pelos liberais selvagens que tanto admira: que desilusão! Já estou a vê-lo a chegar a casa, olhos marejados de lágrimas, a mulher envolta em trapos, os filhos muito magrinhitos, a lareira quase apagada, e o pobre coitado, vergado a uma crise que muito mais que o quebrar, deixou-o de rastos, exausto, famélico, a ter que dar a má notícia:
- Crianças, mulher, o pai apanhou um soco no estômago; este ano não vai haver outra vez prendas de natal.
E a outra não se calava, com aquela loiritude platinada, maquilhada de Rute Marlene num dia não, a falar, a falar: blá, blá, blá,blá, blá, blá,blá, blá, blá,blá, blá, bláblá, blá, blá,,blá, blá, blá,blá, blá, blá,blá, blá, blá,blá, blá, bláblá, blá, blá,,blá, blá, bláblá, blá, blá. Era nestes momentos que chegavam a Romualdo os primeiros instintos assassinos. Primeiro tentava evitá-los, atirá-los para a parte detrás do cérebro; refugiava-se na rádio para se distrair mas esta não calava com o soco no estômago do outro e da agência de filhos da puta que nos andam a tentar foder, e então não conseguia fintar mais a natureza e entregava-se ao desejo reptilário, como se dum casaco quente numa noite de inverno se tratasse. Imaginava-se a atirar com o rádio contra a parede, só para lhe chamar a atenção, chegar-se ao pé dela e arrancar-lhe os olhos com um x-acto, mijar-lhe para o cérebro e no fim dar-lhe um soco no estômago como aquele que a agência deu ao Coelho. Era um pensamento doce que o embalava naqueles momentos difíceis, e por minutos conseguia esquecer-se de tudo: da crise, do FMI, da Moody's, e da colega irritante. Mais droga nenhuma consegue acalmar um indivíduo com a mesma intensidade que o poder da imaginação.
Mas como qualquer droga, em que a pedrada acaba por desvanecer e extinguir-se, também Romualdo acabava por descer à terra e ter que enfrentar as suas crises: a da rádio e a outra. Nessas alturas rangia os dentes e martelava as teclas do computador com muita força, como se quisesse fugir pela internet adentro.

Para a Fábrica de Letras - Segredo

5 de Junho

| sexta-feira, 10 de junho de 2011 | 15 comentários |
-É como te digo, esta situação faz-me lembrar aquela história do urologista. - Abrenúncio exclamava em gestos largos para um Labregoísio atento ainda que um pouco desconcertado.
- Depois de um longo dia de trabalho deu-se conta de que lhe faltava a aliança de casamento. Analisou rápida e criticamente a situação e concluiu que tinha perdido o anel durante um dos inúmeros toques rectais que havia feito durante o dia. Podia ter seguido para casa e explicado à mulher o incidente e a coisa resolvia-se por ali sem mais delongas, na verdade e sinceridade que haviam jurado um ao outro perante deus. Mas o médico escolheu o caminho mais longo, como tantas vezes na vida todos fazemos. Agarrou nos processos e telefonou a cada um dos pacientes a quem tinha feito o exame. «Procure nas fezes» dizia ele, «remexa bem com atenção, que ele há-de aparecer». Os doentes, na ânsia de ajudar o doutor, quando iam à casa de banho lá se punham a remexer o fundo da retrete com o intuito de subitamente verem aparecer no meio da merda um brilhante anel de ouro. Ao fim e ao cabo é o que todos desejamos.
A um outro, que sofria de prisão de ventre, pediu-lhe que com o dedo indicador, procurasse pelo reto, o precioso anel. «Insira bem para dentro o dedo, em movimentos circulares» e o homem, por respeito ao médico lá ia fazendo tudo o que este lhe pedia. Era a segunda vez naquele dia que tinha um dedo espetado pelo cu acima. A situação, que até podia ser cómica se não fosse já trágica desde o começo, tomou proporções surrealistas quando a mulher do paciente entrou de repente na casa de banho e deu de caras como marido, calças pelos tornozelos, telemóvel encostado à orelha, olhos esbugalhados e a mão direita já quase toda dentro do cú.
- E o médico, chegou a encontrar o anel? - Inquiriu Labregoísio.
- Encontrou, encontrou – Suspirou Abrenúncio – Estava no lavatório da casa de banho do consultório.
- Tchhhh!!!
- Pois é – concluiu Abrenúncio depois de mais um gole de cerveja – há dias em que também eu me sinto assim.
- Como se tivesses perdido um anel?
- Não, como se me tivessem a meter o dedo no cú.

O Passeio

| quinta-feira, 9 de junho de 2011 | 16 comentários |

"Poente, fogo na Ria,
Sete cores desiguais.
Chilram aves morre o dia
E vertem sangue os sapais..."
Raul de Matos


Labregoísio sentiu a chapada forte que Abrenúncio lhe deu no cachaço e voltando-se lentamente perguntou: era mesmo necessário? Abrenúncio fez tenção de abanar a cabeça afirmativamente quando foi interrompido pelo real chapadão que Romualdo lhe espetou na testa, parecendo-lhe ter ouvido o eco dentro da cabeça. 
- Temo que isto não tenha acabado aqui! - Declarou Romualdo com ar zangado. Abrenúncio mordia o lábio de irritação quando surgiu Anacleto, que tinha ficado para trás a apertar os atacadores dos sapatos, e, sem pré-aviso, começou a distribuir chapadas por toda a gente: na testa de Abrenúncio, na cara de Romualdo no braço de Labregoísio, que se tentava defender a todo o custo. A situação era tensa e os presentes miravam-se com desconfiança e cautela. As marcas por todo o corpo começavam a dar um ar rosáceo de sua graça e a fazerem-se sentir no incómodo que eram para os seus portadores.
Depois de mais uma chapada de mão aberta que lhe apanhou parte da testa e parte do olho direito, Romualdo, que era o mais pragmático do grupo, resolveu por os pontos nos ii. Largou um estaladão na orelha de Anacleto e declarou:
 - Irmãos! Receio que tenha chegado a hora de partirmos. A situação torna-se insustentável.
- É verdade! Pois claro! - Concordavam os outros, que agora se auto-flagelavam com os olhos postos em Romualdo.
- Como nota futura sugiro que para a próxima vez alguém se lembre de trazer repelente para mosquitos. Isto de andar à estalada é muito bonito mas começa a ser cansativa esta batalha contra as melgas.
- Tem razão! – Concordaram todos, e ao som de chapadas secas a ecoar nos corpos, de lástimas e pruridos, abandonaram apressadamente o sapal. Na Ria, como no poema, o sol incendiava o horizonte em sete cores desiguais.

Para a Fábrica de Letras - Os Problemas Resolvem-se À Chapada

#248

| segunda-feira, 30 de maio de 2011 | 13 comentários |
"Mares convulsos, ressacas estranhas
Cruzam-te a alma de verde escuro
As ondas que te empurram
As vagas que te esmagam…"
Xutos e Pontapés

Abrenuncio, por vezes, sente-se encurralado entre dois mundos. Um sentimento crescente que agora lhe dá para analisar. Do ponto de vista romanesco-literário situa-se entre Kafka e Pedro Paixão. Vive o absurdo de um no meio da extrema solidão do outro.
A angústia tem a forma de duas espirais, pensa; uma que sobre outra que desce. Abrenúncio percorre a segunda com um extremo sentimento de não compreender o rumo da sua própria vida; o como e porquê de se encontrar nesta ou naquela situação, nem como ali chegou. A ignomínia é um fardo de chumbo que carrega sobre os ombros. Assim como a incompreensão e a culpa. Mais que tudo é a vergonha que o puxa para baixo, como vagas gigantescas no mar bravo. Não é moço de remar contra a maré, nem só com um braço como se vivesse sob o signo de Camões. Sente o peso e deixa-se ir; cansado. Os olhos pedem descanso , o corpo pede repouso, a alma implora por silêncio.
No fim de contas é tudo o que precisa: silêncio. Um pouco de silêncio para dormir, um  silêncio que dure dez anos.

Ó Mãe, Ó Mãe, Os Outros Meninos Dizem Que Eu Tenho a Cabeça Grande...

| segunda-feira, 2 de maio de 2011 | 20 comentários |
Mother! You had me
I never had you...
John Lennon

Quando a senhora Laden soube da morte do seu filho estava a untar de manteiga uma forma para fazer um bolo. Entraram-lhe as vizinhas aos gritos pela casa adentro, como era de costume sempre que havia uma desgraça, e lançaram-lhe a má-nova à cara sem qualquer aviso ou preâmbulo: ai mulher és uma desgraçada, mataram o teu filho! A senhora Laden deixou cair a travessa ao chão e acto contínuo desatou a chorar. Cabrões dos americanos, invectivou entre soluços; jogou as mãos ao ar numa expressão de dor que só quem é mãe é que pode entender e parafraseou o Cristo: Eli, Eli, Lama Sabachthani? Que quer dizer mais ou menos, meu deus, meu deus porque me abandonaste? As outras entreolharam-se incrédulas com a erudição da vizinha e com o despropósito da citação bíblica, e logo ali perderam a coragem de lhe perguntar onde havia ela aprendido o aramaico.
Na América, os americanos que conseguiram sair à rua, saíram. Os outros, a maioria, ouviu a boa nova pela televisão, de hamburguer de três andares numa mão e copo de 2 litros de coca-cola na outra. Entre um arroto e um refluxo, limpavam a gordura que lhes escorria dos queixos à bandeira nacional enquanto ruminvam o hino. As mães americanas também festejaram muito. É sempre uma alegria quando são os filhos dos outros a morrer.
Algures em Portugal a senhora Sócrates estremeceu. Ai meu deus e se o próximo for o meu filho? Apertou inquisidora as mãos da vizinha que ouvia a radio-novela com ela. Nã se preocupe vizinha, que eles aqui nã matem ninguém, atã nã viu o 25 de Abril? Mais a mais, já se sabe que cá em Portugal quem charinga toda a gente é o sê filhe.
De onde veio o sotaque algarvio da vizinha da mãe do Sócrates, não sabemos. Nem sequer podemos atestar da originalidade da conversa. Uma coisa sabemos porém: num mundo governado por cabrões, somos todos filhos da mãe.

Para a Fábrica de Letras - Mãe

A Esmola

| sexta-feira, 15 de abril de 2011 | 8 comentários |
A primeira vez que Romualdo viu o homem foi como se tivesse apanhado um soco no estômago e dois nos rins. O ar rareou-lhe nos pulmões e o vómito subiu-lhe à garganta num refluxo de repugnância e dor. O que era aquilo? O homem-elefante sem pernas? Não sabia se o pedinte era baixo ou alto uma vez que as pernas lhe estavam cortadas por alturas do joelho. As rótulas apresentavam feridas vivas, talvez causadas pelo rastejar do homem como forma de locomoção, e outras já antigas, viam-se pela cor arroxeada que desenhavam uma espécie de mapa de sofrimento por todo o corpo da criatura. A cicactriz que exibia no pescoço deixava a advinhar que talvez tivesse sido vítima de algum ataque com arma cortante, ataque esse que lhe custou as cordas vocais: o homem não falava, esticava a mão, rojava-se pelo chão e soltava abafados: Ahhh! Ahhh!
Como era cego de um olho, e do outro parecia sofrer de um caso grave de zona, o homem contorcia o pescoço de um lado para o outro na direcção das sombras que se lhe cruzavam.
Romualdo estava sentado na esplanada do café Aliança e não aguentou ver tanto sofrimento sem intervir. Chamou o empregado de mesa e mandou-o arranjar um pequeno almoço em estilo de farnel. Ele próprio o entregou ao mendigo, juntamente com uma generosa esmola. Um homem que se diz humano não pode passar ao lado de situações deste calibre sem que nada faça; temos que ser solidários – é o que nos distingue dos animais. Eram Estes os pensamentos de Romualdo enquanto satisfeito consigo próprio deixava que o homem lhe agarrasse a perna das calças e a beijasse em forma de agradecimento: Ahhhh! Ahhhh!
Passados meses deste episódio, estando Romualdo e os seus colegas do Banco na esplanada do Aliança, a tomar um copo no meio de uma acesa dicussão sobre a crise e o FMI e toda a conjuntura vigente, quando se ouve, como que arrancado das profundezas do inferno, um som cavo e arrepiante: Ahhhh! Ahhhh! Era o pedinte que rastejava rua baixo. Romualdo já mal se lembrava do homem e os seus colegas fizeram cara de enojados. O que é isto? Perguntavam. Já não se pode beber um copo descansado sem que apareça uma criatura destas? O pior foi quando o indigente se agarrou aos beijos às calças de Romualdo sempre com aqueles latidos mal paridos: Ahhh! Ahhh! Ahhh!
Romualdo demonstrou um embaraço proporcional à repugnância dos colegas, mas como era um espírito sagaz, rápido largou de uma nota de cinco euros, e, magnânimo mais uma vez entregou-a à criatura: Tome lá homem, agora vá à sua vida que nós estamos a discutir assuntos importantes. Ahhh! Ahhh! Respondeu o entulho que era aquela pessoa e saiu a rastejar pela calçada, deixando atrás de si um trilho escarlate que todos deduziram ser o sangue que lhe escorria das rótulas em carne viva.
Sempre que ia tomar o pequeno almoço, Romualdo dava de caras com o homem; Ahhhh! Ahhhh! Fazia ele ao mesmo tempo que uma pasta ramelosa e brilhante lhe escorria pelo canto do olho bom, isto é, daquele que ainda conseguia ver, apesar da zona. Romualdo considerou ser aquela pasta pustulenta o resultado das lágrimas do homem. 
Com o passar dos dias começou a sentir-se gradualmente nauseado. O pequeno almoço começou a saber-lhe  mal e cada vez que mastigava era como se estivesse a provar daquela mistela ranhosa que caía do olho do homem. Sempre que ouvia: Ahhhh! Ahhh! Era como se um berbequim lhe furasse os tímpanos, e sempre que alguem lhe tocava ou lhe agarrava pelo casaco reagia bruscamente.
Um dia não aguentou mais; levantou-se da esplanada do café Aliança, foi direito ao homem quando este já grunhia excitado, Ahhh! Ahhhhh!, sempre com aquele ar agradecido, sem dentes, de lágrima empastada no olho, e deu-lhe um valente pontapé com toda a força. Ahhhh! Ahhh! Soluçou o homem com sangue a saltar-lhe pela boca. Pára!!! Ordenou Romualdo e deu-lhe um soco na cara que o deitou por terra. Ahhh!!! Continuava o homem. Mas tu não aprendes? Perguntou Romualdo e nisto desatou aos pontapés com o empecilho, aleatoriamente, na cabeça nos rins, no estomâgo, na cara... Uma multidão que por sinal também tinha estado sentada na esplanada rodeou Romualdo. Força! Dê-lhe mais! Assim, agora outro! Até que enfim que aparece alguém com coragem. E Romualdo, galvanizado com o apoio da multidão, desferiu pontapés a torto e a direito com toda a raiva que encontrou no âmago do seu ser. O homem acabou por deixar-se dos Ahhh, Ahhhh, limitando-se apenas a encaixar os chutos que Romualdo lhe dava, abanando a cada impacto como se de um boneco de trapos se tratasse. Quando Romualdo parou de aviar, suava copiosamente. Um senhor de aspecto aristocrático que fumava cachimbo e assistira a toda a cena com um certa lassidão, sancionou o acto com verborreia filosófica: O sofrimento do próximo quando é moderado, é bom de se ver, até porque nos transmite dó e alívio ao mesmo tempo; mas mais que isso não, quando se insurge aos nossos olhos, todos os dias, como um despertador irritante, torna-se repulsivo – há portanto que eliminá-lo.  

Click

| quarta-feira, 6 de abril de 2011 | 19 comentários |
O homem que escreve com luz passa na rua sempre de mansinho, como que temendo que o barulho dos seus passos afugente a claridade do dia, aquela luz ténue da manhã que tão gentilmente se desenha nos seus retratos. É todo um jogo complicado de aritmética que se balança no seu olhar; as aberturas, as velocidades, a sensibilidade do sensor, a sua própria sensibilidade que muitas vezes não se coaduna com as medições exactas da máquina..
Há uma nova realidade para ser criada ou re-criada todos os dias, disserta o homem quando encontra um amigo que a páginas tantas, olha para o relógio, desculpa-se com o trabalho e segue a sua vida; uma realidade que só depende de quem olha, de como olha e para onde escolhe olhar primeiro, uma realidade que se constrói, acaba por dizer o homem para si mesmo quando o amigo já vai longe. Tudo depende da luz! Conclui. Há que saber manuseá-la, acariciá-la e torná-la nossa amiga: só desta forma conseguiremos desenhar com ela.
Os retratos do homem eram simples como ele. Possuíam no entanto uma espécie de encanto que ninguém conseguia decifrar. Seriam as cores? Podia ser, argumentavam alguns, no entanto como explicar o mesmo factor nas fotos a preto e branco?
O homem olha para o que não está à vista; através do silêncio dos movimentos, da discrição dos modos, duma solidão que de tão modesta é quase impossível de ser vista.
A ternura do homem só, não é fácil de se observar nos seus contornos. É como a relação entre a noite e o escuro. O homem é invisível na sua solidão: aí está! Clamaram alto como quem grita eureka, o segredo do homem, o factor X, é a sua invisibilidade.
O segredo porém, não é nada de especial, comenta o homem em conversa consigo mesmo enquanto espera que chegue a hora de sair à rua. O segredo, a haver algum, é a forma como se comove com as coisas e com as pessoas; a forma como a luz as envolve, a geometria que as enquadra, os ângulos que as subjectivam; a ternura, já que se falou nela, está na forma como olha para o mundo. 

para a Fábrica de Letras - Ternura 

O Cansaço

| quinta-feira, 24 de março de 2011 | 10 comentários |
 Foi desde muito cedo que começou a sentir-se cansado. Um cansaço existencial, que carregava na alma como um fardo, como uma mula de carga. Chegou a questionar-se se não teria já nascido cansado e, toda a sua vida não fosse apenas um consciencializar-se desse facto: um recordar do peso que lhe tinha sido imputado à nascença, como se tivesse nascido já velho; de cansaço, não como o outro do filme. Os budistas acreditam que carregamos no presente o peso cósmico de outras vidas passadas, mas ele não era budista.
O peso do cansaço que trazia na alma reflectia-se-lhe no corpo e toda a sua imagem era uma anúncio ao desalento. Passava na rua com os ombros descaídos, a cabeça baixa fixando a calçada, como se tivesse recebido uma má notícia ou alguém lhe tivesse batido. Quem o via podia sempre dizer: Olha! Ali vai um homem cansado.
Não raras vezes pensou numa forma eficaz de se matar. No entanto, tudo lhe pareceu complicado e doloroso; eram tantos os preparativos e os trâmites a cumprir que, de tão minuciosos lhe tiravam a vontade e cansavam-no ainda mais; por isso sempre que pensava na morte acabava sentado. Foi num desses dias que reparou em algo curioso. Um ambiente pesado gerara-se à sua volta sem que tivesse dado por isso. Havia uma atitude cinzenta nas pessoas que se cruzavam com ele; um mau estar,uma azia, um desgosto; uma cinzentitude que ele conhecia bem e que se podia traduzir numa única palavra: cansaço! Levantou-se e sem saber porquê desenhou um pequeno sorriso de felicidade; começou a andar e seguiu o mesmo caminho de todos os dias, desta vez porém não se sentiu sozinho.

12 de Março

| segunda-feira, 14 de março de 2011 | 11 comentários |
Às 15h30 a confusão já é grande, o que sempre acontece quando se agregam tantas pessoas num espaço tão exíguo; as sub-reptícias cotoveladas são inevitáveis. Há um nervosismo miudinho que ameaça tornar-se adulto num curtíssimo espaço de tempo. Começam os desabafos, soltos como quem não quer a coisa, mas em voz alta, para que sejam perfeitamente ouvidos «o estado a que isto chegou» ou «isto é uma vergonha».
Embora lá fora o sol expluda em todo o seu esplendor, saudando um dia primaveril antecipado, na sala de espera a luz amarelada projecta sombras castanhas nas cinzentas pessoas que aguardam. Quem espera também é paciente.
Numa parede desfazem-se mitos e dúvidas sobre as doenças crónicas. Ao alto, duas placas em azul e branco indexam os variados serviços: da cardiologia à obstetrícia, passando pela nefrologia até à pneumologia. Sob a autoridade tácita das placas, a multidão (des)organiza-se em duas filas onde se empurram e afastam como numa pequena batalha campal. São quase quatro horas, a impaciência cresce com o aproximar da hora da visita; uma mulher baixinha, mais afoita, corta a fila e decidida dirige-se à porta de acesso; é barrada pelo segurança ao mesmo tempo que um clamor de protestos se levanta «Ó minha senhora, onde é que pensa que vai?» grita uma mulher do meio da fila. «Tem que esperar como toda a gente, minha senhora, aqui não há cunhas» grita outra quando os empurrões começam como forma de protesto. Vista de fora a multidão faz lembrar os ajuntamentos à porta duma qualquer livraria em dia de lançamento do último Harry Potter, ou o Harrods em dia de saldos, ou qualquer loja americana durante a Black Friday.
Um homem enraivecido, visivelmente  magoado no seu sentido de dever cívico, rasga o cartão de dador de sangue quando se apercebe que não tem livre circulação e que tem de aguardar na fila como toda a gente. Desfaz o cartão em mil pedaços em frente das auxiliares lívidas e grita para toda a sala que neste momento é a sua audiência, «Vaiem vocês dar sangue que a mim já não me apanham mais» e depois acrescenta, a confirmar o que todos os outros já tinham concluído «isto é uma vergonha!»
16h00: A multidão ansiosa avança desarvorada pela escadaria acima. O rosto dos visitantes denuncia o estado dos visitados. A euforia bem disposta dos que visitam um recém-nascido ombreia com a desolação velada de quem procura o doente terminal. Para os que esperam lá dentro, a hora das visitas é sagrada,  como a manhã de natal.
Lá fora, a multidão em protesto desce a avenida de volta ao Largo de S.Francisco. A Luta Continua.

#243

| segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011 | 20 comentários |


Perguntaram a Romualdo se era capaz de escrever uma estória só com uma linha. Ele disse que sim.


A Desilusão

| terça-feira, 22 de fevereiro de 2011 | 19 comentários |
Zubaida decidiu divorciar-se no dia em que se convenceu que o marido, Labregoísio, era homossexual. Foi uma ideia que se lhe escarrapachou na mente, e por muito que as suas amigas e os amigos do marido dissessem o contrário, nada a demovia. O seu homem era gay e acabou-se.
Já há tempos que ela vinha sentido uma certa apatia da parte de Labregoísio pela sua pessoa. O ar de enfado com que ele se punha quando ela se apresentava de negligé, o desinteresse total pelas suas coxas roliças, não enganava: tinha um homem-sexual em casa.
O raio do homem, só pensa em jogar playstation com os amigos – reclamava Zubaida a quem a quisesse ouvir, ou seja, quase ninguém.
Labregoísio confrontado com as acusações que punham em causa a sua macheza latina, limitou-se a responder com a bonomia e indolência característica dos maconheiros:
- Oh mulher, tu ‘tás doida.
Mas Zubaida não ia em conversas, e sabia muito bem quando o marido estava a esconder algo, ou não estivessem juntos há mais de 6 meses. Um dia, depois de ler o correio sentimental da revista Maria, as suas fervorosas suspeitas, que já de si cresciam exponencialmente, depressa se tornaram em certezas absolutas, que por sua vez escalaram o monte Everest do preconceito. Saiu alvoroçada do trabalho e seguiu decidida para casa. Pelo caminho treinou cuidadosamente o que diria a Labregoísio, de forma a que este percebesse e não houvesse margem para mais desentendidos. Rejeitou mentalmente várias abordagens até ter chegado àquela que lhe pareceu ser a fórmula perfeita:
- Homem! Tu és guei e eu quero um divórcio.
Chegou a casa e dirigiu-se ao quarto «ainda deve estar a dormir, o calão». Abriu a porta de rompante e deparou-se com um quadro que não correspondia bem ao que ela tinha imaginado. Labregoísio praticava selvaticamente o sexo com a vizinha do 3º andar que era uma moça jeitosa, estudante de Biologia Marinha. Zubaida, desiludida, não com a cena em si, mas por não poder jogar-lhe à cara a tirada que tanto trabalho lhe dera a compor, exclamou em forma de desabafo:
- Ai homem, homem! As coisas que tu fazes só para me contrariar.

25 Por Segundo

| sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011 | 16 comentários |
Frame by frame (Suddenly)
Death by drowning (from within)
In your, in your analysis

King Crimson

Abrenúncio olha para os dias que passam como quem olha para um filme. Sentado em silêncio. Desejando que os dias passem céleres, anseia ao mesmo tempo que não acabem tão cedo. Um paradoxo temporal portanto. E assim se sente; angustiado e ansioso. Padece de um mal peculiar; a avidez pelas coisas que passam depressa demais, antes mesmo de chegarem a acontecer. Abrenúncio observa a vida como uma passagem acelerada de imagens em câmara lenta.
E no entanto, entre um café e outro meio whisky, contempla admirado a exaltação das pequenas coisas. Das miudezas, das frases curtas, das abreviaturas, dos acrónimos. Não existe poesia nenhuma no tédio e a vida passa, agora, tão rapidamente, mesmo quando em câmara lenta. Já não há tempo para mais de duas linhas  de conversa, e para os parágrafos então – meu deus- não há paciência.
É toda uma arte – pensa Abrenúncio – quase uma religião. Uma nova forma de comunicação; onde não se diz nada, afirma-se tudo, e evita-se de livre vontade essa necessidade incómoda que é pensar.

São Pipocas ao Almoço...

| quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011 | 27 comentários |
         Depois de ler o Blog-do-Otário

Tudo o que ele queria era fazer pipocas no microondas. Nada de especial. Sentar-se, relaxar e comer pipocas. O contacto com os outros humanos tornara-se doloroso em demasia. Algo que, a pouco e pouco ganhara contornos de função; melhor, de obrigação.
A tirania da normalidade no decorrer dos anos obrigara-o a uma congregação de costumes e decências que ele abominava.
Detestava a mentalidade de rebanho, aquela que rapidamente se transforma em mentalidade de matilha, e se volta contra nós, se não seguimos a direcção do pastor. E isso era uma das coisas que o empurravam para a solidão; o não ser como os outros, o não gostar, nem de fazer, nem de falar como os outros; não por espírito de contradição, apenas por não lhes reconhecer nenhuma originalidade. A falta de originalidade, lá está, era para ele, o oitavo pecado original, o mandamento que faltava nas tábuas da lei: Não serás trivial!
O que a sociedade entendia por filtros; entendia-os ele como grilhetas. Sentia-se um prisioneiro dos pensamentos e opiniões, um agente da pide de si mesmo. Patrulhava o cérebro de um hemisfério ao outro, escolhia cuidadosamente as palavras e adoptava o ar mais polido antes de afirmar isto ou aquilo. No fim acabava sempre por anuir nas maiores atrocidades só para agradar a este e aquele.
No fim da primeira guerra mundial, contavam-se entre os loucos, uma minoria de homenzinhos vestidos de camisa e calções castanhos, que patrulhavam as ruas insultando e lançando o seu ódio aos sete ventos. Eram os pobres coitados da altura; os tristes; os delirantes, como podia haver quem os aturasse? Durante a segunda guerra mundial, era louco quem não seguisse os homenzinhos de camisa e calções castanhos,  com o seu líder enfezado, de bigode à Charlot, que insultava e lançava o seu ódio ao mundo, como podia haver quem não os amasse? Era tudo muito normal; e as pessoas sentiam-se confortáveis nessa normalidade, porque eram muitas, e já se sabe que muitas pessoas não podem estar erradas. A multidão é um organismo vivo acéfalo. Uma máquina de triturar individualidades afoitas; o maior crime é o de não estar inserido no circulo das conveniências, daquilo que deve de ser, da decência, da normalidade, da superioridade moral. Um dia crucificamos um homem porque o achamos louco; no dia seguinte queimamos os adversários da ideologia do homem crucificado.
Por isso um dia o homem não pensou mais no seu futuro. Aprendeu a fazer uma coisa que segundo o Günter Grass, os portugueses não sabem fazer: dizer não. A partir daí todos os seus impulsos, ou a falta deles, se libertaram e foi como se lhe tirassem o maior peso de cima. Dizer não pode ser das coisas mais libertadoras que um homem pode fazer. Diz a sogra: então, não quer vir jantar cá a casa? Não! - responde o homem – e com uma satisfação estampada na alma, senta-se de cerveja na mão a ver o futebol.
E foi isso que o homem fez desde então. Nunca mais jantou com a sogra. Nunca mais trabalhou como um louco, como um condenado, insaciável, para arranjar dinheiro, muito dinheiro, para comprar coisas, muitas coisas, para ter muitas coisas para mostrar. Um homem tem que ter coisas para mostrar senão não é um homem decente: quem é aquele? Não tem nada? Então é um ninguém. Não pode ser, não podemos ser ninguém, temos que ser alguém, para podermos mostrar que somos alguém; mostrar a quem? Aos outros. É muito importante que os outros saibam.
O homem levantou-se, ignorou os outros, foi à cozinha e pôs as pipocas no microondas. E esse foi um dos maiores prazeres que teve na vida, e por isso o chamaram louco.

Para a Fábrica de Letras - Loucura

O Ataque

| segunda-feira, 24 de janeiro de 2011 | 12 comentários |
Abrenúncio admirou-se quando Romualdo não compareceu na escola primária à hora marcada. Sempre fora um indivíduo pontual e não gostava de esperar nem de se fazer esperado. Era um anti-Sebastianista nato. Passada uma boa meia hora ao frio e à chuva miudinha, que diz-se só molhar os parvos, Abrenúncio cansou-se e entrou para votar.
O acto em si, não tinha nada de especial. Uma cruz dentro de um quadrado e já está. Todo o peso do futuro da nação resolvido em menos de um minuto. O curioso era toda a multiplicidade de comportamentos que se acotovelavam no pequeno hall de entrada.
Romualdo havia de gostar disto, pensava Abrenúncio ao reparar nas senhoras com as suas roupas mais domingueiras, algumas muito pintadas, demonstrando um porte altivo, quase superior. Outras havia, que demonstravam claramente o corriqueiro que havia naquele gesto, apresentando-se quase de pijama. Também havia os que nunca sabiam qual era a sua mesa, os eternos perdidos, e ainda os que se posicionavam como se fossem as estrelas principais do acontecimento. Eram estes que irritavam Abrenuncio e enfureciam Romualdo: os chico-espertos. Há sempre um em qualquer ajuntamento. O que calhou a Abrenúncio naquela tarde, não se cansava de exibir ao seu vizinho de fila, a caneta com que ia votar. Como se fosse uma espécie de Excalibur a que só ele tivesse acesso. Depois desatou a papaguear uma qualquer conversa de comentador político e anunciou em voz alta, mais que uma vez, a sua intenção de voto. Era preciso que toda a gente soubesse. Volta e meia atendia o telemóvel e falava para toda a escola ouvir, como já  era de esperar. Esta fauna…Não é muito diferente de uma ida ao Jardim Zoológico.
No regresso, perto de casa, parou num café para beber a proverbial bica do dia de eleições. O sítio estava apinhado; o café é o fórum do povo – reflectiu.
-A abstenção é que é uma merda – dizia alguém numa mesa perto do balcão.
-Pois – retorquia outro – É por isso que eu não sou abstémio. Risos
Encostou-se ao balcão numa ponta de onde podia observar todo o estabelecimento. Era um hábito seu, beber café e observar. Em pé junto ao balcão tinha uma vista privilegiada das gentes. O balcão era o seu púlpito, os clientes, o seu eleitorado. O povo não vota porque está farto de ser enganado. Cada ida à urna é como se lhe fizessem uma colonoscopia; ou talvez não, talvez seja apenas preguiça e apatia.
Estava nesta doce letargia a sorver demoradamente o café quando é sacudido violentamente por Labregoísio:
- Atão pá, já sabes o que aconteceu ao Romualdo?
- Não, ele não apareceu para votar.
- Pois pá, foi atacado por um Lyonce.
- A sério???
- Diz que sim, diz que foi horrível.
Os ataques de Lyonce tinham vindo a subir muito nos últimos anos, especialmente entre as camadas mais jovens. Era um flagelo aparentemente imparável, nenhuma das acções de prevenção até à data tinham surtido algum efeito. As vítimas caracterizavam-se por entrarem num estado de embrutecimento aterrador; fixavam catatónicas o aparelho de televisão e apresentavam uma lassidão generalizada, que se traduzia numa apatia aguda face a estímulos exteriores. Era uma visão realmente aterradora.
Coitado do Romualdo,...um moço tão novo.

O Toque Rectal

| segunda-feira, 17 de janeiro de 2011 | 21 comentários |
Uma nova estética. Uma nova mentalidade. Algo que não se venda, algo que não se compre. Algo parido numa explosão que nunca se apaga. Algo efémero como a eternidade. Algo que ofusque mas não cegue, algo que nos encante e nos embale; uma ternura, uma partilha na multidão. Um braço levantado no ar, uma música, um quadro.
Algo que seja de todos e não seja de ninguém; algo de que nos possamos orgulhar.
Um dia todos os políticos serão substituídos por músicos de rock'n'roll, e todos os comícios por concertos e todos os votos por aplausos. Alguém precisa de ser governado e humilhado por quem o governa? Alguém elegeu alguém para se ver privado do essencial da vida? Os eleitos não são nossos funcionários? Que parvoíce é esta de mercados para aqui e para ali? Os mercados estão chateados, os mercados estão desconfiados, os mercados estão mal dispostos, não faças barulho que acordas os mercados: mas que merda é esta? E que tal um dedo no cu dos mercados? E que tal um dedo no cu do engenheiro parvalhão; e no cu do presidente com ar de mongolóide; e no cu dos candidatos que salivam com a hipótese de ocuparem o mais alto cargo da pirâmide dos chulos. E porque que se há de resumir tudo a pirâmides? Somos egípcios ou quê? O que é feito das planícies alentejanas e dos espaços abertos? E esta inércia, meu deus! De onde saiu esta pasmaceira, este cair de braços, este bocejar de tédio, este enfado? O único milagre que verdadeiramente se deu,  neste pedaço de terreno abençoado pelo demónio e desprezado por deus, foi o temo-lo arrancado à estalada aos nuestros hermanos. Não se compreende portanto este amochar: de pé ó vítimas da inércia!
Há um ovelhar geral que paira sobre as nossas convicções, sobre as nossas atitudes, sobre a falta delas. Há uma auto-mutilação intelectual que se pratica entre as hostes; uma pletora de mesquinhez, uma mediocridade constitucional, uma diarreia cívica. Nunca mais voltaremos a ser marinheiros: uma nau não se governa de cu para o ar. Nunca mais voltaremos a ser poetas: um poema não se escreve com os pés. Urge acordar. Urge criar uma nova estética, uma nova mentalidade...