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A Esmola

| sexta-feira, 15 de abril de 2011 | 8 comentários |
A primeira vez que Romualdo viu o homem foi como se tivesse apanhado um soco no estômago e dois nos rins. O ar rareou-lhe nos pulmões e o vómito subiu-lhe à garganta num refluxo de repugnância e dor. O que era aquilo? O homem-elefante sem pernas? Não sabia se o pedinte era baixo ou alto uma vez que as pernas lhe estavam cortadas por alturas do joelho. As rótulas apresentavam feridas vivas, talvez causadas pelo rastejar do homem como forma de locomoção, e outras já antigas, viam-se pela cor arroxeada que desenhavam uma espécie de mapa de sofrimento por todo o corpo da criatura. A cicactriz que exibia no pescoço deixava a advinhar que talvez tivesse sido vítima de algum ataque com arma cortante, ataque esse que lhe custou as cordas vocais: o homem não falava, esticava a mão, rojava-se pelo chão e soltava abafados: Ahhh! Ahhh!
Como era cego de um olho, e do outro parecia sofrer de um caso grave de zona, o homem contorcia o pescoço de um lado para o outro na direcção das sombras que se lhe cruzavam.
Romualdo estava sentado na esplanada do café Aliança e não aguentou ver tanto sofrimento sem intervir. Chamou o empregado de mesa e mandou-o arranjar um pequeno almoço em estilo de farnel. Ele próprio o entregou ao mendigo, juntamente com uma generosa esmola. Um homem que se diz humano não pode passar ao lado de situações deste calibre sem que nada faça; temos que ser solidários – é o que nos distingue dos animais. Eram Estes os pensamentos de Romualdo enquanto satisfeito consigo próprio deixava que o homem lhe agarrasse a perna das calças e a beijasse em forma de agradecimento: Ahhhh! Ahhhh!
Passados meses deste episódio, estando Romualdo e os seus colegas do Banco na esplanada do Aliança, a tomar um copo no meio de uma acesa dicussão sobre a crise e o FMI e toda a conjuntura vigente, quando se ouve, como que arrancado das profundezas do inferno, um som cavo e arrepiante: Ahhhh! Ahhhh! Era o pedinte que rastejava rua baixo. Romualdo já mal se lembrava do homem e os seus colegas fizeram cara de enojados. O que é isto? Perguntavam. Já não se pode beber um copo descansado sem que apareça uma criatura destas? O pior foi quando o indigente se agarrou aos beijos às calças de Romualdo sempre com aqueles latidos mal paridos: Ahhh! Ahhh! Ahhh!
Romualdo demonstrou um embaraço proporcional à repugnância dos colegas, mas como era um espírito sagaz, rápido largou de uma nota de cinco euros, e, magnânimo mais uma vez entregou-a à criatura: Tome lá homem, agora vá à sua vida que nós estamos a discutir assuntos importantes. Ahhh! Ahhh! Respondeu o entulho que era aquela pessoa e saiu a rastejar pela calçada, deixando atrás de si um trilho escarlate que todos deduziram ser o sangue que lhe escorria das rótulas em carne viva.
Sempre que ia tomar o pequeno almoço, Romualdo dava de caras com o homem; Ahhhh! Ahhhh! Fazia ele ao mesmo tempo que uma pasta ramelosa e brilhante lhe escorria pelo canto do olho bom, isto é, daquele que ainda conseguia ver, apesar da zona. Romualdo considerou ser aquela pasta pustulenta o resultado das lágrimas do homem. 
Com o passar dos dias começou a sentir-se gradualmente nauseado. O pequeno almoço começou a saber-lhe  mal e cada vez que mastigava era como se estivesse a provar daquela mistela ranhosa que caía do olho do homem. Sempre que ouvia: Ahhhh! Ahhh! Era como se um berbequim lhe furasse os tímpanos, e sempre que alguem lhe tocava ou lhe agarrava pelo casaco reagia bruscamente.
Um dia não aguentou mais; levantou-se da esplanada do café Aliança, foi direito ao homem quando este já grunhia excitado, Ahhh! Ahhhhh!, sempre com aquele ar agradecido, sem dentes, de lágrima empastada no olho, e deu-lhe um valente pontapé com toda a força. Ahhhh! Ahhh! Soluçou o homem com sangue a saltar-lhe pela boca. Pára!!! Ordenou Romualdo e deu-lhe um soco na cara que o deitou por terra. Ahhh!!! Continuava o homem. Mas tu não aprendes? Perguntou Romualdo e nisto desatou aos pontapés com o empecilho, aleatoriamente, na cabeça nos rins, no estomâgo, na cara... Uma multidão que por sinal também tinha estado sentada na esplanada rodeou Romualdo. Força! Dê-lhe mais! Assim, agora outro! Até que enfim que aparece alguém com coragem. E Romualdo, galvanizado com o apoio da multidão, desferiu pontapés a torto e a direito com toda a raiva que encontrou no âmago do seu ser. O homem acabou por deixar-se dos Ahhh, Ahhhh, limitando-se apenas a encaixar os chutos que Romualdo lhe dava, abanando a cada impacto como se de um boneco de trapos se tratasse. Quando Romualdo parou de aviar, suava copiosamente. Um senhor de aspecto aristocrático que fumava cachimbo e assistira a toda a cena com um certa lassidão, sancionou o acto com verborreia filosófica: O sofrimento do próximo quando é moderado, é bom de se ver, até porque nos transmite dó e alívio ao mesmo tempo; mas mais que isso não, quando se insurge aos nossos olhos, todos os dias, como um despertador irritante, torna-se repulsivo – há portanto que eliminá-lo.  

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| quarta-feira, 6 de abril de 2011 | 19 comentários |
O homem que escreve com luz passa na rua sempre de mansinho, como que temendo que o barulho dos seus passos afugente a claridade do dia, aquela luz ténue da manhã que tão gentilmente se desenha nos seus retratos. É todo um jogo complicado de aritmética que se balança no seu olhar; as aberturas, as velocidades, a sensibilidade do sensor, a sua própria sensibilidade que muitas vezes não se coaduna com as medições exactas da máquina..
Há uma nova realidade para ser criada ou re-criada todos os dias, disserta o homem quando encontra um amigo que a páginas tantas, olha para o relógio, desculpa-se com o trabalho e segue a sua vida; uma realidade que só depende de quem olha, de como olha e para onde escolhe olhar primeiro, uma realidade que se constrói, acaba por dizer o homem para si mesmo quando o amigo já vai longe. Tudo depende da luz! Conclui. Há que saber manuseá-la, acariciá-la e torná-la nossa amiga: só desta forma conseguiremos desenhar com ela.
Os retratos do homem eram simples como ele. Possuíam no entanto uma espécie de encanto que ninguém conseguia decifrar. Seriam as cores? Podia ser, argumentavam alguns, no entanto como explicar o mesmo factor nas fotos a preto e branco?
O homem olha para o que não está à vista; através do silêncio dos movimentos, da discrição dos modos, duma solidão que de tão modesta é quase impossível de ser vista.
A ternura do homem só, não é fácil de se observar nos seus contornos. É como a relação entre a noite e o escuro. O homem é invisível na sua solidão: aí está! Clamaram alto como quem grita eureka, o segredo do homem, o factor X, é a sua invisibilidade.
O segredo porém, não é nada de especial, comenta o homem em conversa consigo mesmo enquanto espera que chegue a hora de sair à rua. O segredo, a haver algum, é a forma como se comove com as coisas e com as pessoas; a forma como a luz as envolve, a geometria que as enquadra, os ângulos que as subjectivam; a ternura, já que se falou nela, está na forma como olha para o mundo. 

para a Fábrica de Letras - Ternura