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#248

| segunda-feira, 30 de maio de 2011 | 13 comentários |
"Mares convulsos, ressacas estranhas
Cruzam-te a alma de verde escuro
As ondas que te empurram
As vagas que te esmagam…"
Xutos e Pontapés

Abrenuncio, por vezes, sente-se encurralado entre dois mundos. Um sentimento crescente que agora lhe dá para analisar. Do ponto de vista romanesco-literário situa-se entre Kafka e Pedro Paixão. Vive o absurdo de um no meio da extrema solidão do outro.
A angústia tem a forma de duas espirais, pensa; uma que sobre outra que desce. Abrenúncio percorre a segunda com um extremo sentimento de não compreender o rumo da sua própria vida; o como e porquê de se encontrar nesta ou naquela situação, nem como ali chegou. A ignomínia é um fardo de chumbo que carrega sobre os ombros. Assim como a incompreensão e a culpa. Mais que tudo é a vergonha que o puxa para baixo, como vagas gigantescas no mar bravo. Não é moço de remar contra a maré, nem só com um braço como se vivesse sob o signo de Camões. Sente o peso e deixa-se ir; cansado. Os olhos pedem descanso , o corpo pede repouso, a alma implora por silêncio.
No fim de contas é tudo o que precisa: silêncio. Um pouco de silêncio para dormir, um  silêncio que dure dez anos.

Ó Mãe, Ó Mãe, Os Outros Meninos Dizem Que Eu Tenho a Cabeça Grande...

| segunda-feira, 2 de maio de 2011 | 20 comentários |
Mother! You had me
I never had you...
John Lennon

Quando a senhora Laden soube da morte do seu filho estava a untar de manteiga uma forma para fazer um bolo. Entraram-lhe as vizinhas aos gritos pela casa adentro, como era de costume sempre que havia uma desgraça, e lançaram-lhe a má-nova à cara sem qualquer aviso ou preâmbulo: ai mulher és uma desgraçada, mataram o teu filho! A senhora Laden deixou cair a travessa ao chão e acto contínuo desatou a chorar. Cabrões dos americanos, invectivou entre soluços; jogou as mãos ao ar numa expressão de dor que só quem é mãe é que pode entender e parafraseou o Cristo: Eli, Eli, Lama Sabachthani? Que quer dizer mais ou menos, meu deus, meu deus porque me abandonaste? As outras entreolharam-se incrédulas com a erudição da vizinha e com o despropósito da citação bíblica, e logo ali perderam a coragem de lhe perguntar onde havia ela aprendido o aramaico.
Na América, os americanos que conseguiram sair à rua, saíram. Os outros, a maioria, ouviu a boa nova pela televisão, de hamburguer de três andares numa mão e copo de 2 litros de coca-cola na outra. Entre um arroto e um refluxo, limpavam a gordura que lhes escorria dos queixos à bandeira nacional enquanto ruminvam o hino. As mães americanas também festejaram muito. É sempre uma alegria quando são os filhos dos outros a morrer.
Algures em Portugal a senhora Sócrates estremeceu. Ai meu deus e se o próximo for o meu filho? Apertou inquisidora as mãos da vizinha que ouvia a radio-novela com ela. Nã se preocupe vizinha, que eles aqui nã matem ninguém, atã nã viu o 25 de Abril? Mais a mais, já se sabe que cá em Portugal quem charinga toda a gente é o sê filhe.
De onde veio o sotaque algarvio da vizinha da mãe do Sócrates, não sabemos. Nem sequer podemos atestar da originalidade da conversa. Uma coisa sabemos porém: num mundo governado por cabrões, somos todos filhos da mãe.

Para a Fábrica de Letras - Mãe