Quando acordou de manhãzinha, Abrenuncio soube de imediato que o dia lhe ia correr mal. Os ossos latejavam por todos os lados, as articulações rangiam e sentia um frio ligeirinho correr dentro de si.
«Tu queres ver que eu estou doente?» Virou-se para um lado e depois para o outro como que a tomar coragem para sair da cama. Mas havia uma força maior que o empurrava para o fundo dos lençois, uma vontade maligna que o incitava a ficar na cama, enredava-se nas suas malhas cada vez que se movia e, cada vez se atascava mais; como quem se afunda em areias movediças. Quanto mais pensava em sair da cama mais lhe pesavam os olhos e a cabeça. «Que força é esta que trago nos braços que me aconchega os travesseiros e desliga o rádio?». Abateu-se de cansaço e ressonou um bocadinho para se recompor.
Levantou-se num salto, carregado de uma nova energia cheia de boa disposição. Fez o café e tomou o pequeno almoço com apetite. Agora sim o dia começava bem. Enquanto lavava os dentes lembrou-se de uma Ária d’ A Flauta Mágica e pôs-se a cantar: Der Hölle Rache kocht in meinem Herzen, ao que o bidé e a banheira replicaram: Tod und Verzweiflung flammet um mich her!
Que alegria estar vivo!
Estava nestes preceitos quando o seu bissexto sentido deu o alarme, «pera lá…, mas eu não sei falar alemão, e o bidé parece-me um pouco desafinado», e como quem cai duma nuvem Abrenúncio acordou outra vez, mais enredado ainda nos lençóis e mantas que o aprisionavam.
A hora de se levantar já zarpara há muito e a manhã de trabalho dada como perdida em delírios de bidé e Mozart. Abrenúncio, vencido, chorou muito; havia sido traído pelo cérebro, o seu melhor amigo. Certo era que não faria mais nada o resto do dia – o seu corpo não lho permitiria. Estava prisioneiro de si mesmo.
Aos poucos o choro intempestivo foi dando lugar a uma relaxante acalmia, e Abrenúncio, abatido de cansaço, ressonou mais um bocadinho, para se recompor.