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Autopsicografia Clínica

| quarta-feira, 28 de março de 2012 | 12 comentários |

- Ajude-me doutor que me doi aqui a poesia!
Já está: o médico já não trata só das dores nos ossos, nem do atrofio dos músculos, nem sequer das maleitas dos intestômagos; o clínico actual também trata da alma. O paciente já não é paciente, é ansioso e exige respostas imediatas, quer a nível da linguística quer a nível da metafísica.
Este que aqui vemos tropeçou num verso e deslocou uma rima. Há que medir os níveis silábicos e realinhar os quartetos com os tercetos. Corre o sério risco de infectar o Soneto se não forem tomadas as devidas precauções. Mas o médico que passou longas horas a estudar o luar sabe o que fazer para amenizar essa dor que vem de dentro e que arde sem se ver.
- Vá p'ra casa homem! – exorta o médico– E não pense mais nisso.
- Só assim doutor, não me passa nada para as dores?
O médico sabe ao que o doente vem, já lhe conhece as manhas «quer que eu lhe receite Pessoa, está viciado».
- Dois de Bocage: ao acordar e depois do almoço e um de Camões à noite. E nada de escrever verso livre depois das dez, ouviu? Volte cá daqui a duas semanas.
- Obrigado doutor – agradece o homem resignado: sai cabisbaixo mas aliviado, já não carrega nos ombros o peso do mundo, parte desse fardo deixou-o no consultório, com o médico, que já não sabe o que fazer com tanta desgraça.


Como não tenho por hábito oferecer selos (nem recebê-los), ofereço ao Catsoman esta pequena prosa em formato de posta cibernética. 

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| quinta-feira, 22 de março de 2012 | 5 comentários |
Surge quase sempre de mansinho, pela madrugada, como quem não quer a coisa, insinuando-se pelos lençois como se fosse uma gripe de qualquer espécie. No entanto a temperatura não sobe. Depois, já entranhado no corpo adopta o comportamento do cancro e espalha-se em todas as direcções. Abate leve, levemente, como quem chama por mim...Ainda pensei que fosse droga ou alguma espécie de aguardente, mas nem o medronho me abate assim. Fui ver, não era nada, absolutamente nada, era o vazio de tudo e de todas as coisas. A ausência que incomoda. Zero, o número inventado pelos indianos. Cabrões dos indianos.

O Rebanho

| | 3 comentários |
Tal como o heterónimo do outro também Abrenúncio tem os pensamentos em rebanho. Um rebanho que leva a pastar pelos campos empedrados da urbe quando sai de casa a pé. O rebanho de Abrenúncio é agitado e convulsivo, o que provoca o maior tumulto entre os transeuntes velhos, que são empurrados contra a parede à passagem de Abrenúncio que vai a pensar à força toda: tem as ovelhas mais rápidas a sul do Vascão.
Por vezes um ou outro pensamento tresmalha-se e Abrenúncio perde muito tempo à sua procura, por entre canteiros e debaixo dos carros mal estacionados. Outras vezes, de tão organizados, atravessam as passadeiras em fila indiana, como se fossem bem educados. À noite é que é o diabo, saltam obsessivamente por cima da cerca enquanto gritam obscenidades.
Já pensou em comprar uma caçadeira e acabar de vez com este rebanho selvagem e indisciplinado que o atormenta. Por ora, e como é preguiçoso até a tomar decisões drásticas, Abrenúncio vai levando a coisa com pachorrenta ansiedade, limitando-se a tosquiar um ou outro pensamento em época de crise, por cima da moleirinha, que é onde eles são mais guedelhudos.

O Nariz Vermelho

| quarta-feira, 21 de março de 2012 | 6 comentários |
O Palhaço Anacleto cai pela centésima vez e o resultado é o esperado, a gargalhada geral. Tropeça, cai, levanta-se, é esta a mecânica do bobo. Magoa-se, estão lá as lágrimas pintadas para o provar, levanta-se desentorpece o corpo e sorri. É o que se espera dele: cair e aleijar-se. É um trabalho como outro qualquer; ele desempenha-o na perfeição e o público aplaude.
O público fiel do Palhaço Anacleto não são as criancinhas como era de esperar, antes os pais destas. As crianças estão lá é certo, a acompanhar os pais, mas só para aprenderem desde cedo a fina arte de ser cruel.
O Palhaço Anacleto é a medida de todas as coisas negativas na Cidade. Existe para nos relativizar no fracasso. «Ao menos não sou o Palhaço Anacleto» pensa o sujeito ao ver a vida transformada numa fossa de infelicidade e frustração. É o maior insulto quando se quer magoar alguém «és um Palhaço (Anacleto)!» ouve-se frequentemente.
Ninguém quer ser como o Palhaço Anacleto e é por isso que o vamos ver, para nos certificarmos que não somos ele. O Palhaço Anacleto vicia mais que a heroína. Cada queda, cada trambolhão, é um chuto de tranquilidade superior que nos percorre o corpo e nos ameniza o sofrimento.
Jesus pode ter morrido pelos nossos pecados mas o Palhaço Anacleto cai todos os dias pelas nossas dores.

#282

| terça-feira, 20 de março de 2012 | 9 comentários |
- Há dias em que só me apetece começar a beber de manhã e só parar dois anos depois.
- Porquê dois anos?
- Não sei, pareceu-me adequado.
- Se tivesses dito três, podias depois justificar-te dizendo que três foi a conta
que deus fez.
- É uma sede existencial que me assola mal abro os olhos. Parece que acordo com o sabor do esquecimento a escorrer-me p'las goelas abaixo, é uma sensação tão forte que quase consigo tocar-lhe, sabes?
- Não sei mas imagino. Tive um tio que às vezes acordava assim, a última vez que isso lhe deu, saiu de casa para beber um copo 3 e desapareceu ao fundo da tasca.
- Desapareceu?
- É verdade. Sentou-se ao fundo da tasca a beber e foi desaparecendo, desaparecendo, sem ninguém dar por isso, e quando finalmente alguém deu pela sua falta já ele não estava lá.
- Às vezes também me sinto assim, sabes, como se fosse invisível, como se não produzisse sombra, como se fosse um espectro.
- Se calhar estás morto.
- Acho que não. Mas sinto a falta de qualquer coisa.
- Do tal copo?...
- Não, mais forte que isso...
- Posso dar-te com um banco na cabeça.
- Sinto que estou a deixar escapar qualquer coisa, por entre os dedos, como se fosse areia fina, e quando tenho esta sensação só me apetece fazer disparates.
- Sei o que é isso. Tive um primo que também tinha essas sensações. Um dia resolveu jogar roleta russa sozinho, mas como não sabia as regras do jogo, carregou a arma por completo e perdeu logo à primeira jogada.
- Ui!
- Pois, foi o que ele disse.