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É como um vento que sopra dali para aqui

| quarta-feira, 25 de julho de 2012 | 5 comentários |

Quando se põe este levante, há um vetusto sentimento que se apossa de mim. Algo que vem de longe, de uma outra época, algo tão distante quanto o sangue árabe que nestas alturas me parece efervescer. É então que surgem as ideias esquisitas e só me apetece vestir um colete armadilhado e ir explodir para a praia. É uma coisa linda de se ver, a explosão: a separação brutal das células, a carne que se estica até sair estilhaçada do corpo; há pedaços de mim espalhados sem tino por todo lado. Ali a boiar nas ondas é uma gaivota que me debica; mais à frente nos meio das pedras é um caranguejo que me carrega. Há pedaços de mim no meio da estrada a serem espezinhados pelos turistas; um verdadeiro festival de sangue, tripas e carne dilacerada. O escândalo sucedeu-se quando um bom bocado de mim acertou em cheio na boca de uma virgem, que se bronzeava às escondidas entre as dunas, partindo-lhe um incisivo. A princípio ninguém quis acreditar pois parecia mesmo impossível: virgens no meio das dunas.   

#310

| sexta-feira, 20 de julho de 2012 | 4 comentários |
Arde lá fora,
Arde cá dentro
Não há lágrimas suficientes:
Tudo se consome.

A Matriz

| quinta-feira, 19 de julho de 2012 | 8 comentários |

- Morpheus, ó Morpheus…Desatarracha-me lá esta merda do pescoço que eu quero ir p’ra casa.
Foi assim que Abrenuncio saiu do Matrix. Estava cansado e desiludido. Na matriz tudo era ilusão e propaganda. A vida era superficial e passavam-se os dias em anestesiada correria contra o tempo. Há que competir, produzir e consumir para se poder produzir, consumir e competir: este era o mote. No Matrix, a felicidade era o pote de ouro que estava sempre mais além, sempre um passo mais à frente, inatingível, qual miragem no deserto.
A realidade lá fora é mais feia, suja e ainda mais dolorosa, diziam eles, o Matrix é a única solução para uma vida de sonho passada a sonhar. O Matrix era a cenoura que fazia andar o burro.
Abrenúncio descortinou a manha do programador (ou não fosse ele o Escolhido) e viu a matriz pelo que esta era: um condicionamento, um controle absoluto, uma ditadura dos outros.
Nô mais matriz, nô mais – Pediu Abrenúncio – Estou cansado e quero ser feliz.
E por isso se pôs a gritar: Ó Morpheus, pá…

Uma História Simples

| quarta-feira, 18 de julho de 2012 | 4 comentários |

Uma história feita de palhaços e de circo. De anões voadores e eunucos amestrados. De princesas gordas e elefantes de estimação. Uma história simples; com trapezistas que caiem de costas e ficam magoados no pénis. Do mestre de cerimónias que tinha fobia a multidões e gaguejava muito quando apresentava os números fazendo com que as pessoas pensassem que a sua gaguez era ela também parte do número. Da contorcionista que um dia estando aborrecida torceu-se toda de forma a praticar cunnilingus nela própria. Do Leão que se recusava a comer carne e emagrecia a olhos vistos. Do palhaço pobre que também se recusava a comer carne e que toda gente pensava que era porque estava em solidariedade com o leão quando na verdade era por estar apaixonado pela princesa gorda. Da própria princesa gorda que comia a carne que sobrava dos outros e que um dia confundiu o palhaço pobre com um palito e usou-o para limpar os dentes. De como o eunuco amestrado foi uma vez encontrado a folhear as revistas pornográficas do montadores de tendas e toda a gente se riu muito; pois se era eunuco e amestrado para mais. De como o unicórnio cor-de-rosa invisível um dia bateu as asas e nunca mais foi visto, deixando a filha mais nova da mulher barbuda muito triste pois era com ele que gostava de brincar às escondidas.  De como o engolidor de fogo se engasgou uma vez com um copo de água e toda a gente lhe bateu violentamente nas costas. Do infeliz acaso em que o atirador de facas se distraiu a olhar para as pernas da mulher do mestre de cerimónias e acertou sem querer com uma faca num dos anões que passava por ali a voar. Do elefante de estimação que cada vez que lhe pediam para dar a patinha esmagava alguém e era por isso que ninguém lhe pedia para rebolar. 
Uma história de família portanto, mas também de amor e comunhão, naquele que foi considerado um dia o maior espectáculo do mundo.

#307

| segunda-feira, 16 de julho de 2012 | 9 comentários |


E pronto, com um simples clique arruma-se tudo. Desliga-se a visão, o tacto, o cheiro e o paladar. Tudo o que acaba rápido começa com um lento premir do dedo; seja no gatilho ou no telecomando. Desliga-se a máquina de suporte vital, desliga-se o coração, desliga-se o despertador. Tudo no mundo se desliga.
Despertador: eis um nome bem colocado. Todos os dias, somos arrebatados violentamente do mundo acolchoado do sonho, e acordamos ansiosos para o sofrimento reciclado: despertamos para a dor.

Pegadas na Areia

| quarta-feira, 11 de julho de 2012 | 2 comentários |

- ...Olho para trás e qual não é o meu espanto quando só vejo um par de pegadas na areia. Onde é que estavas tu quando eu mais precisei de ti?
- Ah, foi nessa altura que eu carreguei contigo ao col…
- Outra vez essa história de andares comigo ao colo, mas tu pensas que eu sou parvo ou quê?
- Mas é uma metáfora tão bonita.
- Metáfora? Querem lá ver que agora deste em lírico?
- A bem da verdade se diga que eu estive sempre contigo nos momentos mais dific…
- Tangas!
- Porque me arrenegas?
- Sabes onde é que tu estavas quando eu precisei de ti na Páscoa?
- ???
- A beber copos e a comer pão com os teus amigos.
- Mas isso foi na última ceia.
- Deixa-te de teorias. É verdade ou mentira?
- Bem… Tenho que confessar que falas a verdade.
- Eu sabia.
- O que posso fazer para te compensar?
- Quero um iphone.

Voo Nocturno

| terça-feira, 10 de julho de 2012 | 6 comentários |

Ildefonso tinha uma tara que muito desagradava a sua esposa: andar de bicicleta à noite. À hora que as pessoas normalmente se iam deitar, depois de se despedirem no facebook, àquela hora em que já começa a fazer fresquinho, era quando Ildefonso agarrava na bicicleta e desatava a pedalar rua acima, rua abaixo. Era um prazer como outro qualquer, explicava ele à mulher, gostava de sentir o vento nocturno roçar-lhe a fronha.
Hoje vou inovar, Maria, e nisto agarrou no velocípede e saiu de casa. Maria não prestou muita atenção, embrenhada que estava a copiar frases inteligentes do Citador, mas depois, como se acordasse violentamente de um sonho, resolveu ir à janela para ver o que é que o marido queria dizer com aquilo do inovar.
Ai! - Exclamou Maria da varanda ao ver Ildefonso percorrer a rua, em alta velocidade, montado na bicicleta: todo nú. Ildefonso, não podia estar mais contente, era um antigo sonho que finalmente concretizava. Sentia-se como se atravessasse as nuvens a alta velocidade com o vento a sacudir-lhe o corpo inteiro, é o que há de mais parecido com voar, pensou com os botões que não tinha. Maria praguejava baixinho, volta para casa cabrão, volta imediatamente para casa, apetecia-lhe gritar mas continha-se devido às avançadas horas da noite.
Numa das indas e vindas vertiginosas de Ildefonso, eis que a roda da frente se prende numa brecha do asfalto (posta ali pelos deuses da coincidência) fazendo a bicicleta empinar e cuspindo violentamente Ildefonso para o ar. Nisto, vinha o vizinho do rés-de-chão a chegar casa, depois de ter levado a passear o caniche irritante, quando vê Ildefonso passar por ele num voo arcado, de badalo ao léu e sorriso na cara. Boa noite vizinho, cumprimenta Ildefonso. Nem o vizinho, nem o cão retribuiram o cumprimento, quedando-se apenas boquiabertos no meio do passeio.
No primeiro andar, Maria, de mãos na cara, aflita, não se contém e deixa escapar em voz alta, Ah! desgraçado, ao menos cai de costas.

Misturas

| | 2 comentários |

Não há muito mais que fazer disse-me ele, é tudo uma questão de como se mistura o vodka. Em quantidades exageradas provoca sonolência acompanhada de instintos violentos e autodestrutivos, por outro lado, em fraca quantidade torna-se num sumo forte e acabas por beber mais do que a tua conta. Há que descobrir a via do meio - como o Buda? - Exacto. Anular todas as paixões, todas as expectativas, procurar viver na verdadeira ataraxia. Como o vodka bem misturado? Aprendes rápido jovem gafanhoto, lembra-te sempre do velho ditado tibetano: se procuras deus, mistura bem o vodka.

O Altruísta

| segunda-feira, 9 de julho de 2012 | 7 comentários |

“Yet each man kills the thing he loves,
By each let this be heard,
Some do it with a bitter look,
Some with a flattering word,
The coward does it with a kiss,
The brave man with a sword!”

Oscar Wild – The Ballad of Reading Gaol



Peguei na máquina fotográfica e saí de casa com alguma urgência. Desatei a disparar a torto e a direito, indiscriminadamente: pessoas, animais, casas. Fotografar casas não dá tanto gozo como fotografar pessoas. As casas não se desviam, nem se agacham, nem gritam: vai fotografar a tua mãe, cabrão.
Só comprei a máquina fotográfica porque não me venderam uma caçadeira. Um pequeno azar para mim, uma grande sorte para o mundo dizem vocês. Discordo. A máquina isola, congela e eterniza: a pessoa não morre mas fica ali para sempre, naquela posição, presa em duas dimensões, sem voz, sem cheiro, sem sabor; parada no tempo, todos os dias. Se alguém se chegasse ao pé de mim e me perguntasse: olhe desculpe, o senhor prefere ser fotografado ou levar com um tiro de caçadeira à queima roupa mesmo em cheio nos intestinos? Eu cá prefiro o tiro de caçadeira, diria eu sem pestanejar, quem é que quer ficado parado no tempo? O indivíduo tem que se mover para a frente, tem que se renovar, a sua felicidade depende disso.
Foi imbuído desse espírito filantropo, dessa vontade altruísta de ajudar a sociedade, que eu tentei comprar a caçadeira, mas recusaram-me essa vocação missionária. Por isso fotografo, anonimamente. As pessoas que me vêem passar, nem imaginam, que quem ali vai, só lhes deseja o bem.

A Bomba

| sábado, 7 de julho de 2012 | 3 comentários |

Quando lhe pediram para construir a bomba atómica, ele construiu a bomba atípica. Era uma bomba que não explodia. Lançava-se na terra e ficava ali, apática de tudo e de todos, uma bomba sem aptidão para a maldade. Passado algum tempo as pessoas habituavam-se à presença da bomba e deixavam de lhe prestar atenção; era mais um bibelot enorme que estava espetado no meio do jardim. Os namorados beijavam-se na sua sua sombra e as criancinhas usavam-na como escorrega. Era uma bomba feita para a paz, portanto.
Um dia falaram-lhe de Oppenheimer e no papel relevante que este teve na construção da bomba atómica. Esse Oppenheimer é um mariconço, retribuiu o cientista, fazer bombas para destruir, qualquer um faz; agora um bomba de inércia, uma bomba que pode ser usada por crianças, adultos e idosos, uma bomba de brandos costumes, quem é que criou? Quem? Eu!

#300

| sexta-feira, 6 de julho de 2012 | 2 comentários |
- ...É uma espécie de tristeza que se cola aos braços. Depois sobre pelos ombros e dispersa-se pelo corpo todo. É como uma película fina e branca nos olhos, que nos impede de ver decentemente...
- Como as cataratas?
- Sim, mas com menos água.

Na Praia

| quinta-feira, 5 de julho de 2012 | 10 comentários |

Na praia não há enganos. O que está ali é aquilo mesmo: a praia. Há a água, areia e sol. Também há sol na cidade e no campo, dizem os especialistas. Sim, é verdade! Mas na praia o sol sente-se mais em casa, faz parte do pacote.
Na praia não há mentira nem dissimulação. Ninguém diz que tem frio quando está calor. O céu é azul e a areia é branca, e é assim que tem de ser, não nos serve de nada dizermos o contrário. Para quê? As ondas enrolam-nos porque está na natureza delas enrolarem, se não enrolassem, não eram ondas.
Andamos semi nus na praia para deus nos ver melhor, para lhe mostrarmos que já não temos medo dele. Estamos aqui, dizemos, e agora? Roçamos corpos e cometemos o pecado original vezes sem conta. Só existe um pecado: não ser original. E deus, envergonhado vira a cara por segundos. Cada segundo de deus corresponde a um milénio na Terra.
O que eu gosto mais na praia é da cerveja.