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Eu, a Porta e o Resto

| quarta-feira, 3 de outubro de 2012 | |

Aconteceu tudo de uma forma muito rápida, como já é costume nas revoluções dos homens e nos terramotos. A água baixou de nível tão depressa que alguns peixes morreram sufocados no ar. O chão tremeu, as paredes tremeram e a chávena de café tremeu-me nas mãos. As pessoas correram desesperadas pelas ruas, não observando o velho adágio que diz que o melhor sítio para se estar numa ocasião destas é junto aos batentes das portas, mesmo que o prédio se desmorone por completo. Desmorone é um belo verbo para insultar turistas anglo-sáxónicos. Foi o que fiz: ao passar por mim um que ia a correr desarvorado, gritei-lhe:
- Corre sim bife antes que o prédio se desMóron.
O homem em pânico, desorientado da vida, respondeu-me com o indicador e o dedo médio esticados:
- fuck you!   
- Vai tu ó parvalhão – gritei-lhe em português – Havia de te cair um tsunami em cima desses cornos.
E digo isto e sinto-me mais aliviado. Não há nada melhor no meio duma catástrofe do que saber que há pessoas a sofrer mais do que nós; é uma doce sensação de conforto que nos aconchega no meio do caos. E no entanto sinto que tremo cada vez mais.
- Eh lá – penso eu - olha que isto já não é só do tremor de terra: há aqui também resquícios de ontem à noite. Uma noite longa e nebulosa, povoada de equívocos. Devia ter pedido um cheirinho no café; é um hábito ancestral  que uma pessoa tende a esquecer-se sempre que uma catástrofe natural nos entra assim pela vida, sem mais nem menos.
A páginas tantas, dou-me conta de uma inusitada mudança de paisagem. O cabrão do prédio acabou mesmo por ruir e só sobrei eu e a moldura da porta. Como numa máquina fotográfica olho através da porta e enquadro a desgraça: tudo são ruínas, destroços, tudo é disforme, não há ponta por onde se pegue e se diga: isto começou aqui e acabou ali. Nada! Não sobrou nada. Tudo tão de repente. E eu só consigo pensar:
- Ah foda-se, agora é que eu bebia um belo de um whisky. 

7 comentários:

Anónimo Says:
3 de outubro de 2012 às 23:09

meu deus!!! o que eu gosto de te ler!!! (não haverá nada publicado?)

El Matador Says:
3 de outubro de 2012 às 23:23

:) não

Briseis Says:
3 de outubro de 2012 às 23:42

é por estas e por outras que tens o inferno garantidinho, Matador querido! ...olha agora ir buscar conforto na desgraça dos outros... estás como o nosso governo =)

El Matador Says:
4 de outubro de 2012 às 15:31

«O céu não é o paraíso nas nuvens nem o inferno é a terradora fornalha. O primeiro, é uma situação em que existe comunhão com Deus e o segundo é uma situação de rejeição»

Papa João Paulo II

Anónimo Says:
5 de outubro de 2012 às 12:47

ahahahah! Adorável este teu post!

P.S.: Eu também não fumo (fumo esporadicamente, o cigarro que alguém me dá).

:)

Catsone Says:
5 de outubro de 2012 às 15:37

Killer, obviamente que me vou lembrar disto aquando de um terremoto!!!

A nAnónima tem razão: para quando um livro?

Porta-te.

El Matador Says:
5 de outubro de 2012 às 19:52

para quê publicar quando aqui tudo é público e de borla?

Além disso, a única hipótese de publicar seria naquelas editoras manhosas em que tu pagas o livro para que elas tenham todo o lucro, uma espécie de PPP da literatura.

@Desejo: fazes bem em não fumar, mas posso sempre dar-te um cigarro quando quiseres.