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#341

| terça-feira, 29 de janeiro de 2013 | 5 comentários |

- O que deus me deu em beleza retirou-me em talento!
- Achas? Por outro lado compensou-te em modéstia.
- Como assim?
- Não penses mais nisso.
- Podia ser tudo o que quisesse se tudo o que eu quisesse não fosse: nada.
- Sendo assim já és tudo o que queres.
- Explica.
- Se tudo o que queres é nada e se não és nada, és tudo o que queres.
- Parece-me confuso, mas sinto que há um pouco de verdade nisso tudo. O que eu queria mesmo era ser feio.
- Feio e optimista ou feio e realista?
- Feio como as pessoas feias que não têm nada e padecem os horrores de nascerem feias e pobres, sem ninguém que goste delas, sem sorte, sem nada percebes? Horríveis, angustiantes, sem graça, gordas, asquerosas, daquelas que uma pessoa primeira controla-se e depois não aguenta mais e tem que dizer: Caraças! Que pessoa tão feia.
- E tu querias ser uma dessas pessoas porquê?
- Queria sentir o que a maioria das pessoas neste mundo sente. Queria saber como é.
- O quê?
- A angústia. A dor de viver. Aquilo de que é feito a Arte. Mas, helas, sou belo e mágico e bom…
- …E humilde.
- Exacto.

#339

| sexta-feira, 25 de janeiro de 2013 | 3 comentários |

É triste. É tudo tão triste. Começa com um piano que marca preguiçoso um compasso simples, pergunta e responde conforme avança. O executante parece não querer mais levantar as mãos cada vez que as pousa no teclado. Arrasta depois uma melodia: uns versos lentos e melancólicos como quem boceja nostálgico, como quem acorda drogado de saudade.
Entra o violino… Que angústia! Um sofrimento que se prolonga quase até deixar de ouvir-se, um esgar no rosto, uma nota suspensa de aflição. O piano martela aqui e ali como que a chamar para a realidade, mas o que se mantém é aquela expressão paralisada de medo: uma boca de braços em baixo, um olhar de mãos pendidas. O ambiente aquece com a voz semi-rouca do violoncelo que surge qual bálsamo conciliador. Ameniza acolá a ferida aberta com uma escala ou duas. Depois parece deixar-se levar pela entropia e mais não faz que sublinhar a dor. Harmonizam os instrumentos; reparamos agora que também há uma espécie de xilofone baixinho a sustentar todo o edifício. Agora estão todos de acordo: não há nada a fazer, é deixar sufocá-lo, é deixá-lo ficar. Saem de cena, um a um, os instrumentos ao de leve, como uma brisa que se deixa de sentir. Fica apenas o violino, em suspenso como entrou: um chorar baixinho sem lágrima, uma nota só que se mantém equilibrada sob ameaça de extinção, indelével, incorrupta, como o passado que paralisa à noite, como uma droga. 

Moon

Espelho Meu, Espelho Meu...

| sexta-feira, 18 de janeiro de 2013 | 6 comentários |

Tenho a alma em carne viva
E os cordões desapertados
Cada vez que troco os passos
Desfaço-me em mil bocados


Hoje de manhã, no acto de me pentear e tentando alinhar os pêlos mais revoltos da ruiva barba que me caracteriza, dei comigo a pensar: caramba pá, és um gajo deveras bonito. Acto contínuo resolvi convidar-me para jantar. Uma coisa impessoal lá em casa, com umas velas de cheiro, um vinho branco e uma massa feita à pressão. Já há umas semanas que me circundava e mandava umas indirectas, a apalpar terreno, mas nada… Nunca quis saber de mim. Hoje no entanto, fazendo uso de umas falinhas mansas que só eu conheço e aproveitando que estava um tudo nada invulnerável, telefonei-me e lá consegui convencer-me. Cheguei mais cedo que o combinado com uma garrafa de vino e um ramo de flores. Oh! Emocionei-me, não era preciso, Qual quê? Eu sou mesmo assim, um romântico invertebrado. Como cheguei antes da hora marcada dei comigo ainda a fazer o jantar. Abri a garrafa de vino e servi-me generosamente. Gosto de beber vinho enquanto me ensaio na cozinha. Ultimamente acho que cozinho apenas como desculpa para poder abusar do vino. Sentei-me à mesa e ataquei as entradas de queijo derretido com orégãos e azeite que tinha preparado. Hummm! Que bom! Comentei e agradeci-me. Com o prato principal enchi mais um copo de vino e brindei-me. Que maravilha, pensei, isto está a correr muito melhor do que tinha planeado. Geralmente fico nervoso quando recebo visitas, mas desta vez, até me estava a portar condignamente. Fiz os brindes habituais para um futuro e saúde melhor e aproveitei como sempre para falar sobre mim: dúvidas, angústias e tudo mais. Abanei a cabeça, fingindo-me interessado enquanto me ouvia: sou um bom ouvinte, e para mais, conhecia bem aquela história. Depois do jantar, a pièce de résistance foi o whisky de malte com que me felicitei. Não há dúvida que só uma pessoa como eu é que me pode conhecer desta forma: pois se era exactamente a marca que costumo beber, mais do que devia, advirto-me, ultimamente parece que tenho abusado do licor dos deuses (da Escócia), sim, sim, mas não há-de ser por causa de uma noite que há-de vir o mal ao mundo, retorqui. Tens razão, concordei e enchi mais um copo. Depois, já no quarto, como se estivesse num qualquer simpósio questionei-me sobre o sentido do Amor. Parece que tenho andado a ler Platão às escondidas, O Banquete, nos intervalos dos intervalos de quando não faço nada. Pela parte que me toca, argumentei, o amor são duas linhas paralelas que se cruzam de vez em quando e que nunca se hão-de encontrar nem no infinito, e disto não se lembrou Platão. É bem verdade, anuí, pode dar-se o caso que nem sequer sejam paralelas, as linhas, e que uma seja apenas uma projecção da outra, ou seja, a outra nunca esteve lá, compreendes? Compreendo perfeitamente, já estás bêbado! Não é por aí, expliquei-me, a outra linha nunca esteve lá, era apenas uma ilusão, um engano. É possível! Tenho que escrever isto! Sentei-me ao computador sem reparar que me tinha deixado desamparado à porta do quarto. Daí observei-me sentado ao PC em efervescente agitação de conceitos que se escapavam pelo teclado, vítimas de um jantar e noite bem regadas. Despedi-me até uma próxima altura mas sinceramente nem dei por ter saído. Acabei com a excelsa liquidez caledónia e estirei-me ao comprido na cama, na diagonal, como gosto de fazer de vez em quando em noites de lua nova. Pensei em mim e na rudeza que foi o não me ter acompanhado até à porta. 
Adormeci a borbulhar em malte na certeza porém de que iria acordar bem acompanhado.


Às Portas de Kiev no Inverno

| terça-feira, 15 de janeiro de 2013 | 7 comentários |


Dou comigo uma e outra vez a retornar ao café onde se assistem a jogos de futebol 24 horas por dia. A população continua na mesma: mines firmemente em punho, beatas dependuradas do canto da boca, pescoço levemente inclinado para o ecrã gigante e um dos braços poisado sobre a perna traçada, sempre pronto a violentar o tampo da mesa em caso de prevaricação por parte do árbitro. A linguagem também se mantém a mesma: caralhadas a torto e a direito e o ocasional filho-da-puta quando se trata de mencionar o já referido juiz. O que também se mantém firme no seu posto são as mamas da ucraniana que serve ao balcão. Duas luas cheias a rebentar por dentro do soutien, que me agitam as marés vivas sempre que vou tomar café.
- Ultimamente tens vindo muito aqui! – Grunhe o meu vizinho do rés-do-chão, pessoa que detesto e que é uma das alimárias frequentes no recinto.
- É verdade, descobri que o café me faz bem, ajuda-me a concentrar…– minto descaradamente, o café faz-me horrivelmente mal, sendo uma das questões que mantenho com o meu médico.
Encosto-me ao balcão e peço um café à Ucraniana. Aproveito a interacção para lhe elogiar a nova cor com que pintou o cabelo. Ela mira-me desinteressada e com secura: da, da. Sinto o ar gelado como se estivesse às portas de Kiev no inverno.
Reparei entretanto que o tipo dela passa pelo homem macho, o mecânico com as mãos ainda sujas de óleo, o trolha com as calças manchadas de cimento e por aí a fora. Por isso fiquei uma vez sem tomar banho durante 3 dias, rebolei-me na terra molhada depois de chover (para grande espanto de uma senhora que passeava um caniche) e por fim coloquei o inevitável palito ao canto da boca. Cheguei ao café com a blusa de alças toda cagada à Bruce Willis, pedi um café e um bagaço com a voz rouca à Tom Waits, e, como a Ucraniana estava de folga nesse dia a única coisa que fiz foi figura de parvo.
- Andas a estudar para sem-abrigo? – Perguntou sarcástico o cabrão do rés-do-chão. 
Como se não bastasse ainda apanhei uma valente constipação.
- Aiai – Resmunga o médico sem olhar para mim enquanto passa a receita – Olha que o café faz-te mal, pá! Mas as mamas dessa ucraniana ainda te fazem pior.

Na Fronteira Com a Rússia

| segunda-feira, 14 de janeiro de 2013 | 10 comentários |

Pessoalmente sinto-me uma matrioshka. Sou oco e arredondado e existem vários cá dentro. Vi-as uma vez à venda na fronteira com a Rússia mas não comprei nenhuma. Assombrou-me a forma como se pareciam comigo.
Por fora também sou grande e prometo muito. Quem me vê ao longe até pensa antes de se aperceber da minha vacuidade, eh lá, o que é aquilo que ali vem? Depois desatarraxam-me a cabeça só para encontrar lá dentro uma versão mais pequena e mais mesquinha de mim. Uma e outra vez repetem a operação e lá vão surgindo eus cada vez mais absurdos, brutais, coléricos, cínicos, invejosos e sempre que isso acontece diminuo de tamanho perante os olhares espantados da multidão. Que prodígio é este perguntam, o homem tem que estar em algum lado. Enganam-se redondamente. E camada atrás de camada, como se faz à cebolas, vão-me desmanchando, com a fúria avassaladora de quem se atola no lodo e não encontra a agulha no chiqueiro. Acabo por aparecer na última peça, compacto e indivisível, sujo, intratável, boçal, patético, minúsculo e imprestável. Ah! Exclamam, é só isto? Agito furioso os bracinhos num frémito enervante. Alguém me dá um pontapé que me deixa deitado de costas a espernear, como as baratas depois de pisadas. Brado aos céus insultos a todos os deuses mas a voz sai-me esganiçada. De tanto remexer acabo soterrado na lama e toda a vida me sabe mal.  

Da Assimetria do Cansaço

| sábado, 12 de janeiro de 2013 | 8 comentários |



Não há mais a dizer que não seja: o cansaço. O cansaço comanda a vida. Insurge-se-lhe sub-repticiamente. Baralha-lhe as ideias. Obstrui-lhe o senso comum, a decisão sensata. O cansaço toma decisões independentes de um cérebro que não o consegue controlar e no fim desculpa-se: foi o cansaço.
Está na base de todos os ismos de todas as guerras e revoluções. Foi por cansaço que o Cristo se deixou levar ao monte Gólgota. Entregou-se de corpo e alma à fustigação tonitruante, em virtude da amnistia de um povo criado e abençoado por deus. Deus, que ao fim e ao cabo eram ele e mais dois transfigurados num só. A diversidade na unidade. «Que canseira!» disse Pilatos ao tentar compreender o paradoxo, e ainda que lhe esperasse nas termas um banho quente numa infusão de ervas aromáticas, ficou-se por uma simples lavagem de mãos.
Até Judas, o apóstolo inteligente, cansou-se um dia de toda a mistificação do cansaço perene. Farto de dar a outra face e de amar o próximo; farto dos milagres de pacotilha, da política em prol dos pobres e desfavorecidos, dos reformados, dos doentes, dos cegos e paralíticos, dos ciganos e bombeiros, dos viciados em láudano; alardeou um dia: fuck you guys, i’m goin’ home!
«Quem é que eu tenho que beijar para sair deste cansaço miserável?»- Perguntou o apóstolo inteligente antes de perder as botas (que na verdade eram sandálias) no seu próprio cu. 
Hoje passei por uma estante no sweet drop onde se oferecia um copo  de whisky na compra de uma garrafa. Eu como gosto de copos e promoções agarrei de imediato na garrafa. Mais tarde regurgitei: com o dinheiro daquela garrafa poderia ter comprado cinquenta copos. 
Mas tal como o Cristo redentor, deixei-me sacrificar ao deus antropomórfico dos mercados, do dinheiro e da economia. «Deus é o dinheiro, só é salvo quem o adorar»  cantou a sábia e não menos cansada Lena d’Água nos idos de oitenta. Estar cansado é condição sine qua non para se ser cidadão deste cubículo golfista, como atesta o próprio documento na sua designação: C.C. – Cartão de Cansaço.
Nós o que precisamos não é de austeridade nem de subsídios em duodenos. Não precisamos da imaginária Europa prostituída, nem sequer dum pangermanismo pós-moderno disfarçado de gorda arrogante. O que a malta precisa é de descanso…Ou então de uma guerra: provam as estatísticas que durante as guerras os suicídios baixam consideravelmente.

#334: Mines, Minduíns e Dirigíveis

| sábado, 5 de janeiro de 2013 | 10 comentários |
Fui tomar café com o intuito de despertar as ventas e dar um pouco de passeio às gorduras depois do jantar. É certo que não devia beber café, segundo o médico, a cafeína é um dos muitos alcalóides que me são prejudiciais à saúde. É por isso que o acompanho sempre com um balão de whisky, não vá o outro entrar todo puro e despudorado pelo estômago adentro como se tivesse num concerto rock. Digo isto porque ouço Led Zeppelin enquanto escrevo estas linhas: é banda de adolescência que já não ouvia há muito e hoje apeteceu-me. Talvez por ter vindo motivado do café. Encostei-me ao balcão e pedi um café, ou melhor, resolvi a confusão da empregada que sempre que me vê nunca sabe se quero um descafeinado ou um café a sério, como os homens. No ecrã gigante da parede passava um jogo de futebol do campeonato de Espanha, digo passava porque nestes estabelecimentos às vezes dá-se o hábito de se verem os jogos do dia anterior quando não são in extremis de uma outra época. É uma espécie de fé inabalável, típica do fã de bola:  esperar que no dia a seguir a sua equipe acabe por ganhar o jogo que perdeu no dia anterior. Não façamos no entanto juízos de valor, existem crenças mais absurdas. O que os homens gostam a sério é de estar em conjunto, mesmo que em mesas separadas torcendo por equipas diferentes. O homem cultiva a sua homenzorrazuidade com fervor religioso e é isso que o une em volta do cálice divino da mine e da hóstia consagrada do tramoço. Reparei nisto com um olho enquanto que com o outro apreciava o decote generoso da ucraniana do balcão (sim, sou vesgo além de gordo). Sempre que havia um quasi golo ou uma entrada daquelas mesmo duras (esta expressão aprendi lá) os indivíduos agitavam-se como fiéis de uma igreja baptista, levantavam os braços e davam graças ao deus do catechu.
Porra! Ia sendo! Ah caralho! Foram alguns dos aleluias que depreendi fizessem parte do culto. Tentei repeti-los em ocasiões que me pareceram adequadas no intuito de me integrar; até porque notei que a moça de leste nutria um espécie de ternura por demonstrações de virilidade sedentária-etílica, e eu, como tenho um fraco por moças oriundas daquela linha que vai do Báltico ao Mar Negro tentei portar-me à altura. Dei por mim a coçar os testículos (outra profissão de fé) e a pedir mais mínduins.
Como se a gaja não reparasse puto em mim, ainda que eu me tenha tornado num macho latino instantâneo, resolvi que estava na altura de me sobrepor àquela horda de grunhos embrutecidos, ou não fosse eu um adepto ferrenho daquela equipa que tinha a camisa às riscas. Ah! Caralho. Quase que ia fonde! – gritei à bruta ao mesmo tempo que bati com a mine no balcão num acto que tinha tanto de desiludido como de irritado. A lituana olhou-me com ar espantado assim como o resto dos meus congéneres: parece que o jogo já tinha acabado há pelo menos meia hora. Fiquei atabalhoado como sempre fico quando mais que uma pessoa olha para mim, no entanto não me desfiz:
- A culpa desta merda é do árbitro!
Saí de cabeça erguida; o consenso era geral, a culpa tinha sido mesmo do árbitro e da sua mãe que pelos vistos mantém um ocupação freelancer por detrás do Hotel Eva.
Não engatei a moldava mas descobri o homem que havia em mim. Até hoje eu nunca passara de uma Elisabete Sofia intelectualóide, incapaz de tomar conta fosse do que fosse, mas agora sim eu era um verdadeiro Romualdo Alizando Cresce, de micose no escroto e arroto leguminoso; isto tudo numa noite, sem nunca ter ido à tropa.